terça-feira, 28 de setembro de 2010

Livre arbítrio: apresentações intuitivas do problema



O problema do livre arbítrio é o primeiro problema filosófico com que os alunos de filosofia do ensino secundário se deparam. Eis alguns exemplos possíveis para a sua formulação:


Será que tudo o que acontece é determinado por causas físicas? E quanto às acções humanas: obedecem às leis naturais? Dependem da vontade livre do agente? Será a visão científica do universo compatível com a defesa do livre arbítrio humano?

Penso que este problema filosófico é particularmente fascinante, mas não é fácil de abordar pelos jovens de 15 anos recém-chegados à filosofia. O modo como é colocado pode ser decisivo para o interesse dos alunos. Julgo saber por experiência própria que devemos partir de exemplos claros e intuitivos e avançar gradualmente em termos de subtileza. Sugiro três exemplos de natureza distinta para colocar o problema: uma situação prática, um texto e um vídeo apanhado na net.
  • A situação prática:

O Miguel partilha o cacifo com o Jorge. Um dia, descobre que o Jorge lhe roubou do cacifo o seu mp3. O Jorge desculpou-se dizendo que tinha sido «um impulso» que não conseguiu controlar. Será que a justificação do Jorge faz sentido? Porquê?
  • O texto:

«Constitui um facto empírico evidente que o nosso comportamento não é previsível da mesma maneira que é predizível o comportamento dos objectos rolando por um plano inclinado. (...) Se alguém prediz que eu vou fazer alguma coisa, posso muito bem não fazer essa coisa. Ora bem, este tipo de opção não está à disposição dos glaciares que se movem pelas montanhas abaixo ou das bolas que rolam em planos inclinados, ou dos planetas que se movem em torno das suas órbitas elípticas.»   John Searle

Haverá realmente diferenças importantes entre o movimento de um glaciar, uma bola ou um planeta e as acções dos seres humanos? Se sim, quais?
  • O vídeo:


Faz sentido afirmar que o papel dos seres humanos no mundo é basicamente idêntico ao de meras peças de um dominó encadeadas entre si? Porquê?

Até à próxima.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Herberto Helder, Pink Floyd e a atitude crítica



Hoje, numa aula do 10º ano, a propósito de um texto de Herberto Helder, ocorreu-me falar do tema “Another Brick In The Wall”, dos Pink Floyd. E veio à discussão a função da Escola, a importância da disciplina de filosofia, o direito à diferença e o que significa ter atitude crítica, entre outras coisas. E então apercebi-me que a música poderia bem ser a banda sonora do texto. “Sê tu próprio” ou “Pensa por ti mesmo” foram alguns dos títulos sugeridos pelos alunos. Por isso resolvi fazer aqui o que não pude fazer na aula: confrontar o texto com um excerto do filme (Pink Floyd The Wall, 1982) que Alan Parker realizou a partir do álbum da banda inglesa. Cá vai:

Vou contar uma história. Havia uma rapariga que era maior de um lado que do outro. Cortaram-lhe um bocado do lado maior: foi de mais. Ficou maior do lado que era dantes mais pequeno. Cortaram. Ficou de novo maior do lado que era primitivamente maior. Tornaram a cortar. Foram cortando e cortando. O objectivo era este: criar um ser normal. Não conseguiam. A rapariga acabou por desaparecer, de tão cortada nos dois lados. Só algumas pessoas compreenderam.

Herberto Helder, in Photomaton & Vox

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Avishai Cohen Duo






A ONU comemora hoje, 21 de Setembro, o Dia Internacional da Paz. Há muitas formas distintas de celebrar a paz e o relacionamento entre os povos. Uma delas é a música. Deixo-vos com o duo de Avishai Cohen no Festival de Jazz de Viena, em 2008.



segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A música dos Madredeus

Morreu Francisco Ribeiro, violoncelista e fundador dos Madredeus, um dos grupos mais importantes da história da música portuguesa. Entrou no grupo aos 20 anos e faleceu aos 45, vítima de cancro. "Haja O Que Houver" é a minha música preferida do grupo. Aqui fica para fruição de todos os que a apreciem.


domingo, 19 de setembro de 2010

A minha relação com a filosofia: um texto autobiográfico quase confessional

Auto retrato com flor no bolso


«Filosofia» significa, etimologicamente, «amor à sabedoria». Baptizada com nome de mulher («sofia» ou sabedoria), a Filosofia tem originado ao longo da história reacções díspares. Pessoalmente, tenho mantido com a Filosofia uma relação amorosa nem sempre pacífica. Como todas as histórias de amor, também ela tem tido altos e baixos. As reflexões intimistas despertam em nós recordações e a tentação de fazermos balanços põe-se à espreita. Oscar Wilde dizia que o único modo de nos libertarmos de uma tentação é ceder-lhe. Pois que assim seja.
Deslumbramento. Tenho para aí 13 ou 14 anos. Há assuntos que me intrigam, ideias que me atraem. A vida de cada um de nós é um «livro em branco»? Quem decide o que nele se escreve? Conforta-me a ideia de que somos nós próprios, incomoda-me a possibilidade de que tudo esteja já «escrito». É o meu primeiro amor filosófico, o problema do livre arbítrio. Voltarei a ele regularmente, com o carinho especial que dedicamos ao primeiro amor. Curiosamente, é também o problema filosófico que os alunos de Filosofia do Secundário estudam em primeiro lugar. Agrada-me a ideia de passagem de testemunho.
            Namoro, noivado, casamento. O namoro dura dois anos no liceu, o noivado assumido prolonga-se pelos quatro de Faculdade. Tenho agora vinte e dois anos e acabei o curso. As férias de Verão desse ano são a minha despedida de solteiro. Creio poder dizer que me casei oficialmente com a Filosofia a 21 de Outubro de 1984, em Pinhel, onde me apresento para dar aulas de Filosofia pela primeira vez. Em vez do tradicional «pode beijar a noiva», ouço do presidente do conselho directivo um lacónico «Aqui tem o seu horário. Tem uma aula logo às sete e meia da noite». O meu colega de grupo apadrinha o acontecimento e «tranquiliza-me» deste modo: «Olha, pá, isto não tem nada que saber. Chegas lá, fazes a chamada, escreves o sumário no quadro e enrolas os tipos a falar do programa, blá blá blá, e pronto, está a tocar para sair». Pois, o pior era o blá blá blá… Não fazia a mínima ideia do que era suposto dizer-se numa aula de apresentação e não me lembro minimamente do que disse. Recordo-me bem, isso sim, do que aconteceu depois. Era uma turma de adultos (quase todos mais velhos do que eu…) e a «aula» continuou no bar de um deles, até tarde. Estava frio e pairava no ar um aconchegante odor a lareira. Levaram-me de madrugada à estação para apanhar o comboio. Era quase manhã quando entrei em casa. Esgotado e um tanto «ressacado», como acontece por vezes na noite de núpcias.
Crise conjugal. Passado o entusiasmo próprio dos primeiros anos, os sintomas começam a aparecer. Seria impressão minha, ou era cada vez mais difícil suscitar nos alunos perplexidades que os estimulassem? Darei conta mais tarde de que o problema não residia neles nem em mim, mas sim nos programas da altura. Não é impossível motivar os jovens para a Filosofia a partir dos autores ou de uma perspectiva histórica. Mas é mais difícil e, se calhar, pedagogicamente menos recomendável. As teorias dos filósofos são respostas mais ou menos acabadas a problemas que se mantêm em aberto. E a história da Filosofia (como a história da Arte ou da Ciência), encontra um fio condutor que, embora ordene e «aconchegue» as ideias, esquece por vezes o terreno essencial de onde brotaram: a pergunta. Aprender a filosofar, em vez de aprender a Filosofia, como dizia Immanuel Kant. O caminho parece ser esse. No fundo, trata-se de um regresso: o regresso ao espanto inicial, à interrogação crítica, à perplexidade do primeiro olhar. Apaixonar-me de novo? Porque não?
Paixão da meia idade. Ressurge a ousadia, renasce  o desejo. A atenção centra-se no que é novo, no que nos faz sentir jovens outra vez. Felizmente para mim, este renascimento é um acto de fidelidade e não o contrário. Não tenho de ser infiel, não é necessário procurar fora da Filosofia o que procuro, porque ela continua jovem e sedutora. Volto à faculdade, desta vez para um mestrado em Filosofia da Natureza e do Ambiente. Encontro a Filosofia mais atraente do que nunca. Rejuvenescida, surpreende-me com novos e contemporâneos problemas: Apenas os seres humanos têm valor intrínseco ou também o têm os animais e as plantas? É moralmente errado fazer desaparecer espécies animais e vegetais? Uma espécie em vias de extinção tem mais valor do que uma espécie que o não seja? Temos o dever de manter zonas selvagens na natureza?
Iludam-se, portanto, os que vêem na Filosofia uma senhora idosa e respeitável, mas irredutivelmente ultrapassada pelo tempo. Como se pode ver, ela soube descobrir o elixir da juventude que nos mantém vivos: a capacidade de nos interrogarmos a nós próprios. Perdê-la seria catastrófico, porque ficaríamos sem a chama da racionalidade que distingue a civilização da barbárie. Perdê-la seria ficarmos mais pobres, porque ficaríamos privados do mais subtil dos prazeres do Homem: o prazer de pensar.