quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Elegia ao livro de ponto

A última foto antes do prematuro desaparecimento


ELEGIA AO LIVRO DE PONTO

O livro de ponto deixa saudades.

Era como um amigo que nos habituámos a ter ali. À mão, literalmente.  Nele registámos o nosso dia a dia, ano após ano, como um diário coletivamente partilhado.

O livro de ponto estava para o professor como o caderno onde se tomam notas sobre o doente está para o médico. Em ambos se registam as informações inacessíveis aos doentes e aos alunos: os diagnósticos e as faltas, por exemplo. Ambos são um símbolo de poder: legitimam a autoridade, sustentam as regras de funcionamento, delimitam os dois lados do exercício profissional – o público, acessível a todos, e o privado, da exclusiva responsabilidade de quem exerce. O que se escrevia no livro de ponto era lei: o sumário, as datas dos testes, as faltas. Tempos houve em que a falta a vermelho provocava angústia idêntica a um devastador diagnóstico médico: ambos eram tão temidos quanto inapeladamente irreversíveis.

Mas o livro de ponto também era um hino à caligrafia em toda a sua diversidade. O livro de ponto não era xenófobo: aceitava letra pequena, grande e média, em diferentes cores, feitios e estilos. Era também democrático: quer fossem inclinadas para a direita, rigorosamente centradas ou com evidente inclinação para a esquerda, todas as caligrafias cabiam nele. Também não era nacionalista, o livro de ponto. Aberto ao diálogo intercultural, acolhia com igual disponibilidade os sumários escritos em língua portuguesa (com ou sem acordo ortográfico), inglesa, francesa, espanhola, alemã, ou mesmo latim e grego.  

Foi o livro de ponto que ajudou a identificar a jovem professora na sua primeira aula, resguardando-a do embaraço de ser confundida com uma nova aluna. Que funcionava como um mural onde os professores comunicavam entre si, muito antes de haver os e-mails ou o facebook. Era o livro de ponto que nos disciplinava na marcação dos testes, impedindo que os alunos tivessem mais do que um no mesmo dia. Era atrás dele que procurávamos disfarçar o nervosismo da primeira aula, era através dele que memorizávamos os nomes dos alunos ao fazermos a chamada. A ele confiámos as pequenas mentiras piedosas: a primeira aula que nunca é como nele dizemos que é, a última do ano que sempre acaba antes da hora que nele registamos. Sem ele, perdemos o álibi que nos permitia mandar os alunos ir entrando ao primeiro tempo enquanto íamos à sala de professores buscar o livro de ponto e tomar rapidamente um café...

Conseguem imaginar um médico sem estetoscópio, um funcionário público sem esferográfica, um polícia sem boné, um cozinheiro sem avental?

Descansa em paz, livro de ponto. Viverás para sempre nas nossas memórias.