terça-feira, 24 de março de 2015

Herberto Helder (1930-2015).



Vou contar uma história. Havia uma rapariga que era maior de um lado que do outro. Cortaram-lhe um bocado do lado maior: foi de mais. Ficou maior do lado que era dantes mais pequeno. Cortaram. Ficou de novo maior do lado que era primitivamente maior. Tornaram a cortar. Foram cortanto e cortando. O objectivo era este: criar um ser normal. Não conseguiam. A rapariga acabou por desaparecer, de tão cortada nos dois lados. Só algumas pessoas compreenderam.

Herberto Helder, in Photomaton & Vox

sexta-feira, 13 de março de 2015

A filosofia vai ao cinema mudou de visual

Henri Matisse, Le bonheur de vivre, 1905, óleo sobre tela

A filosofia vai ao cinema em versão primavera/verão.

terça-feira, 10 de março de 2015

Descobertas do baú: a origem da moral segundo Karl Marx (explicada como se fosse a primeira vez)

Karl Marx

Karl Marx: a moral é uma mentira inventada pelos poderosos

            Marx (1818-1883) não gostava da filosofia tradicional. Escreveu-o com toda a clareza: “Tudo o que os filósofos fizeram foi interpretar o mundo de diferentes maneiras, mas o que importa é transformá-lo.” Por aqui se pode ver que as suas preocupações eram essencialmente práticas. Não lhe interessava o homem abstracto de que falavam os filósofos, mas as pessoas concretas que ele pretendia ajudar. Toda a teoria marxista se orienta neste sentido: libertar os oprimidos, criar um mundo mais humano. A intenção, como se vê, não é nova; os meios preconizados para a realizar são, no entanto, francamente originais. Vejamos porquê.

            Dizemos muitas vezes que todos os homens são iguais. Mas se olharmos para a realidade com um pouco de atenção, verificamos que tal não acontece. Qual é a origem das desigualdades? Marx não tem dúvidas: a propriedade privada. Tudo mudou quando o primeiro homem disse: isto é meu! Nesse dia nasceram as classes sociais. O critério para classificar os homens passou a ser o “ter”. Possuir propriedade privada, no início a terra, depois essencialmente a indústria, passou a ser para o homem o objetivo principal. A história da humanidade é o palco desta “luta de classes” e o resultado, afirmou Marx baseando-se no seu tempo, é a profunda desigualdade existente entre uma minoria de poderosos, a burguesia, e a esmagadora legião de oprimidos, os trabalhadores.

            O raciocínio de Marx é o seguinte: se a origem das desigualdades é a propriedade privada, “corta-se o mal pela raiz” abolindo a propriedade privada. Ora, como os que a detêm não a vão dar “de mão beijada”, a única solução é a maioria unir-se e tomá-la pela força, ou seja, fazendo uma Revolução. Esta violência, não sendo desejável, era para Marx inevitável. Os fins justificam os meios, pensava ele, porque o fim a atingir é uma sociedade mais justa, sem pobres nem ricos, sem propriedade privada nem classes, em que as terras, as fábricas e todos os meios de produção sejam pertença comum de todos os homens. Numa palavra, o Comunismo.

            Mas, se isso é realmente assim, por que motivos os trabalhadores não fazem nada para alterar a situação? — poder-se-ia perguntar. É aqui que entra a questão da moral. As pessoas não fazem nada porque julgam que isso é errado. Como foram educadas no sentido de respeitar as normas morais vigentes, pensam que elas existem precisamente para serem respeitadas. Marx diz que isso é uma mentira, mas uma mentira tão bem “contada”, que até parece que é verdade. A isso chama ele ideologia. Na sua opinião, a moral surgiu como tentativa de legitimar a propriedade privada e o poder dela decorrente. Quem a inventou? Aqueles a quem as proibições morais são favoráveis: a classe dominante. Por exemplo: a quem convém a regra “não roubarás!” ? Aos que nada possuem não é de certeza...

            A moral surgiu, assim, como uma “arma ideológica” ao serviço da classe dominante. E para que as classes dominadas não se apercebessem da sua verdadeira função, a moral foi sendo apresentada como algo imparcial, válida para todos os homens e sancionada por Deus. Marx, que era ateu, via na religião um aliado poderoso da moral: a esperança na vida eterna “adormeceria” os trabalhadores, levá-los-ia a aceitar passivamente os costumes e as normas,  de tal modo que já não se importariam com a sua deplorável situação real. É esse o sentido da frase “a religião é o ópio do povo”.

            Em resumo, segundo Karl Marx, a moral não nasce com o homem: ela é uma invenção, e uma invenção enganadora. A sua função é negativa: serve para convencer os desfavorecidos de que a desigualdade social é uma coisa natural. Uma vez desmascarada, o seu carácter de classe vem ao de cima. Na sociedade sem classes por que lutou, este tipo de moral subjugadora seria substituída por valores humanistas, em que o ser humano valesse por aquilo que é e não por aquilo que tem ou deixa de ter.
            Assim pensava Karl Marx. Como é sabido, não foi exatamente isso que foi feito em nome do “Marxismo”...

Diego Rivera e Frida Kahlo diante de um mural do artista

            A par da economia e, naturalmente, da política, a arte foi um dos domínios da criação humana que foi fortemente influenciado pelas ideias de Marx. Escolhi um exemplo retirado da música (e um exemplo português) para ilustrar o carácter engagé (comprometido politicamente) de um estilo de música que, por esse motivo, é conhecido como “música de intervenção”.
            Chamo especialmente a atenção para a letra:

A paz, o pão 

habitação 

saúde, educação 

Só há liberdade a sério quando houver 

Liberdade de mudar e decidir 

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

            Senhoras e senhores, Sérgio Godinho:



sábado, 7 de março de 2015

Descobertas do baú: a consciência moral segundo Immanuel Kant

Caravaggio, Sacrifício de Isaque, 1603, óleo sobre tela


            Em tempos, o programa de filosofia do secundário incluía a discussão do problema da origem da consciência moral. Na sequência dessa discussão, acabava por surgir um outro bem mais interessante, a saber, o problema do valor da moral.
            Apesar de não serem autores obrigatórios, eu gostava de confrontar os alunos com as teses defendidas por vários filósofos: Kant, do lado da “moral tradicional” e Marx, Freud e Nietzsche, do lado dos “adversários”.
            A escolha destes três “mestres da suspeita” tinha também como objetivo dar a conhecer aos jovens adolescentes teorias que vieram a ter repercussões enormes não só na filosofia, mas também na arte, na cultura e na política. Embora telegráficas e caricaturais, as breves apresentações que na altura escrevi para os alunos e que aqui reproduzo praticamente sem alterações, cumpriam a função de “facilitador de descobertas” para os mais interessados.
            Hoje, é possível um estudante terminar o 12º ano com excelentes classificações sem ter uma ideia minimamente consistente sobre o marxismo ou a psicanálise, por exemplo.
            Espero que estes pequenos textos que escrevi há vários anos lhes despertem a vontade de descobrir estes e outros pensadores que marcaram tanto o século XX.

Qual é a origem da consciência moral?

            Pode definir-se consciência moral como uma espécie de “voz da consciência” ou “juiz interior”, cujo papel principal seria o de funcionar como uma “bússola”, capaz de nos ajudar a discernir o que é “certo” e o que é “errado” em termos éticos. Assim entendida, a consciência moral parece ser exclusiva do ser humano.
            Um dos critérios utilizados para classificar as diferentes teses sobre este assunto pode ser o seguinte: ou a consciência moral já nasce com o ser humano ou é algo que se adquire posteriormente. Chamam-se às primeiras teses inatistas e às segundas teses não inatistas. De seguida iremos aplicar este critério a alguns dos pensadores estudados nas aulas.


KANT: a lei moral ensina-nos a sermos dignos da felicidade

            Kant é um dos mais célebres defensores da tese inatista. Considera este filósofo que a dimensão moral faz parte da natureza humana, sendo algo que já nasce connosco, ou seja, é inata.
            A consciência moral é, para Kant, a consciência do dever, que se nos apresenta na forma de “lei moral”. Kant diz que, nas escolhas morais, a vontade humana se encontra numa “encruzilhada”: ou o prazer ou o dever.
            É certo que a busca do prazer também é natural. Não se trata, contudo, da nossa característica principal. Mais importante que a tendência natural para a felicidade, existe no ser humano o sentido racional da moralidade.
            O instinto busca a felicidade, a razão a dignidade. É ele próprio quem o afirma: "A moral, propriamente dita, não é a doutrina que nos ensina como sermos felizes, mas como devemos tornar-nos dignos da felicidade." Ambas as disposições são naturais no Homem, ambas nascem connosco. Mas o sentido mais nobre da existência humana consiste na vitória da razão sobre o instinto.
            Ainda que o não siga, todo o ser humano sabe o que é o dever. Mesmo o mais analfabeto dos homens tem a capacidade de descobrir em si o que é certo ou errado. Por outro lado, o mais sábio dos homens pode revelar-se um absoluto cretino. Por isso, não é a sabedoria que faz de uma pessoa uma pessoa boa, mas a força de vontade para seguirmos o que a consciência nos diz.
            Como afirma Kant, a consciência moral é uma espécie de ”bússola”, com a qual qualquer pessoa “sabe perfeitamente distinguir, em todos os casos que se apresentem, o que é bom e o que é mau”. Portanto, “não é preciso nem ciência nem filosofia para que ela saiba o que há a fazer para se ser honrado e bom”.

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            Para finalizar este primeiro post sobre o tema, aqui fica uma última sugestão: comparar as teses de Kant com esta pintura de Henri Matisse e este poema de Fernando Pessoa...

Henri Matisse, Le bonheur de vivre, 1905, óleo sobre tela


 Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa