terça-feira, 23 de outubro de 2012

Aniversário

Imagem retirada do filme "A Invenção de Hugo", de Martin Scorsese



Álvaro de Campos

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, 
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, 
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa, 
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça! 
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! 
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

(Retirado daqui.)

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Foi você que pediu uma consciência moral?

Johnny Depp no filme Sweeney Todd


BARBA OU CABELO? [1]

1
           
            E se um dia um desconhecido lhe oferecer flores, dizendo:

            “Rachei-a de alto a baixo, como um animal, porque ela contava as moscas no tecto enquanto fazíamos amor.” [2]

            que irá pensar, cara leitora, de tal impulso?
           
            E já agora: e porque não uma situação como esta, em que

2

            A senhora Maria deixou a sopa ao lume, fogão no mínimo não vá o feijão queimar-se, bate com firmeza na janela da vizinha e fica à espera:    nada, como de costume, tem de bater outra vez  truz truz  não é que seja má pessoa que até nem é, mas já está dura de ouvido, a Ti Mariana, é por isso que demora, demora, mas olha, parece que já lá vem, ligeira no andar como quem tem de compensar, e a língua afiada que o bairro bem conhece  sempre vais, hã? olha qu’essa camone não vale o trabalho!  mas a senhora Maria não pára, lá vai ela rua acima, dizendo para si mesma que sim que vai, até que nem custa nada, vendo bem, é ir num pé e vir noutro, porque apesar de não ser íntima, sempre se é vizinha, e morrer-se assim como a alemã do 7º,  toda queimada que ficou, coitadinha da Ingrid!  valha a verdade que era um tanto esquisita, diz-se que nem cozinhar sabia, mas isto as estrangeiras é o que se sabe, bem arreadinhas, coisa e tal, sempre no laró mas cozinha nada, e com isto tudo a senhora Maria está já quase a chegar, mas é bom que se despache se não quer ficar sem sopa, e como ela quer a sopa resolve despachar-se e vai daí acelera o passo, pés meio dentro  é melhor tirar o avental  meio fora dos chinelos pretos dos trezentos - e uff! até que enfim, lá chega ela ao cemitério.
            Tudo estava a correr bem (se é que se pode dizer isso de um funeral), o padre Ardósias, apesar de que ainda era cedo, não havia dúvida que estava sóbrio, a família da Alemanha tinha vindo e tudo, mas vestidas assim, senhora Maria, vestidas assim! coscuvilhava a invejosa da Gertrudes, a choradeira da ordem ainda não tinha começado, se bem que um funeral sem choro não é funeral nem é nada! (e esta Gertrudes que não se cala...), a coisa estava portanto a correr dentro dos conformes - e é então que o viúvo se passa completamente dos carretos!
            Nunca tinha visto o menino Edmundo assim!  diria mais tarde a mãe Gija, ama de tudo quanto é garoto lá no bairro, e que o criara desde pequeno. Começava então um nunca mais acabar de pontapés e cabeçadas e socos e cuspidelas e arranhões e tudo, o padre é que as pagou, o Edmundo às cavalitas dele só gritava  eu bem a avisei, eu bem a avisei  e o padre a tentar safar-se  a refeição é sagrada  continuava o Edmundo  a refeição é sagra...  pumba!, um murro bem nos queixos  toma lá a bênção, que é p’ra não me sujares a batina  e a poeirada era tal que já nem se via nada, e o Edmundo  que bem que corre o maganão  zás, num ápice e já estava empoleirado bem no cimo da figueira  vou-vos contar porquê, ai isso é que conto  mas lá se ia acalmando, até já falava mais baixo  mas eu não saio cá de cima!  pois bem, que ficasse  deixem lá ficar o gajo!  e o Edmundo ficava e ameaçava  o primeiro filho da pu...  e a sirene da polícia a aproximar-se  que me tente agarrar...  mas a coisa compunha-se, todos mais calmos, fez-se o jeito ao Edmundo  se quer contar que conte!  e o Edmundo que sim que queria e vai daí conta mesmo, e fica-se então a saber que

            “Com a minha mulher, senhor, passava-se com os ovos estrelados o que se passa com as crianças, nunca a deixavam em paz. A diferença é que as crianças crescem e acabam por se desenvencilhar sozinhas, enquanto que os ovos estrelados... E que se poderá comparar a dois ovos bem estrelados? Comemo-los como o maior dos dons do céu. Passa-se o mesmo com tudo, é uma questão de precisão. Sou pedreiro, sei do que estou a falar. O que é importante para os ovos é a quantidade e a temperatura do óleo onde os deitamos - partidos e despejados com cuidado - e o momento exacto em que temos de os tirar, no instante em que a clara está inchada como a massa de um sonho. Os ovos estrelados não devem “colar”, como ela dizia. Nunca mais o disse, graças a Deus. Um ovo estrelado em que já não se vê a gema ou cuja clara ainda está transparente ou rasgada não é um ovo estrelado nem é nada.
Mas quem poderia prever que a queimadura seria tão grave?” [3]

            A senhora Maria estava estupefacta. Incredulidade no olhar, espanto e medo estampados no rosto, são as pernas que a levam dali para fora,  com licença estou com pressa!  mas a verdade é que está mesmo embora se não lembre porquê, tenta correr sem cair e quase o consegue,  porcaria dos chinelos dos trezentos!  levanta-se ligeira e é então que se lembra: a sopa! esqueci-me da merda da sopa!  e desata a correr por ali abaixo, um pé calçado e outro não, ainda bem que o marido não estava, pensa ela,  logo o Serafim, que detesta violências  e é verdade que ele não estava, não senhor, mas o que a senhora Maria não sabe é que ele não poderia ter lá estado mesmo que quisesse, porque entretanto
3

            O senhor Serafim aproveitou a folga da manhã para ir ao barbeiro. Não ao do costume, que infelizmente está de férias, mas ao novo que abriu no centro da vila. Dirige-se para a cadeira quando chega a sua vez  barba ou cabelo? repara que é novinha em folha só barba, por favor enquanto se senta confortavelmente. Depois de lhe espalhar a espuma pelo rosto e de afiar as navalhas na tira de couro, o barbeiro inicia finalmente o seu trabalho.
            É só então que, em surdina como nas confidências, começa a contar ao senhor Serafim a seguinte história:

            “Sou barbeiro. É uma coisa que pode acontecer a qualquer pessoa. Quero dizer que até esse dia fui um bom barbeiro. Cada qual tem as suas manias, eu não gosto de borbulhas.
            Aconteceu assim: comecei a barbeá-lo calmamente, ensaboei-o com habilidade, afiei a navalha no braço da cadeira e suavizei-a na palma da mão. Sou um bom barbeiro! Nunca cortei ninguém e ainda por cima esse tipo não tinha uma barba muito espessa. Mas tinha borbulhas. Devo reconhecer que nas suas borbulhas não havia nada de especial, no entanto, incomodavam-me, enervavam-me, revolviam-me as tripas.
            A primeira, contornei-a bem, sem grande dificuldade, mas a segunda começou a sangrar. Então, não sei o que me deu, acho que é uma coisa muito natural, aprofundei a ferida e depois, sem poder deixar de o fazer, com um só golpe, cortei-lhe a cabeça.” [4]

            O senhor Serafim sente-se um tanto atordoado. Poderia jurar que o seu rosto está branco como a cal, mas prefere não o fazer. A verdade é que o senhor Serafim não gosta nada de proferir afirmações que não possa provar. Em condições normais, levantar-se-ia para verificar junto a um espelho até que ponto se justificaria a sua suspeita quanto à coloração do rosto. Mas acontece que a presente situação tem muito pouco de normal. Mesmo que quisesse, o senhor Serafim não conseguiria levantar-se, pois tal não lho permitiriam as tremuras que parecem ter tomado conta das suas pernas. E se, por hipótese absurda, o senhor Serafim se tivesse podido levantar e dirigir junto a um espelho, o seu olhar estaria tão turvo e nublado que não conseguiria constatar com a objectividade necessária a coloração do seu rosto.
            Agora que pensa nisso, o senhor Serafim dá-se conta de que deveria ter-se dirigido para casa, imediatamente após ter saído do barbeiro. Realmente, se ficara tão perturbado, porque viera para o café, que ainda por cima está tão cheio? Assim é mais provável que reparem nele, como acontece com o senhor que está sentado na mesa em frente, a olhar fixamente na sua direcção. Também não tem muito sentido ter pedido café com leite e lhe ter deitado açúcar, ele que habitualmente toma descafeinado com um único adoçante. Resta-me mexer com insistência o meu café, para que o açúcar se dissolva bem, pensa para consigo o senhor Serafim, e é isso mesmo que ele sente dever dizer ao senhor que está sentado à sua frente, atendendo ao olhar estranho com que o observa. Sem parar de mexer com a colher, e depois de informar o seu vizinho de mesa de que o açúcar não se encontra ainda suficientemente derretido (sempre com um sorriso nos lábios e a boa educação de que tanto se orgulha), o senhor Serafim encontra-se finalmente com o espírito liberto para tentar entender os mais recentes acontecimentos dessa tarde.
            Que atitudes tão estranhas podem as pessoas ter, pensa o senhor Serafim. Porque lhe teria o barbeiro contado aquilo da borbulha? Tê-lo-ia morto realmente? Como era possível alguém tirar a vida a outra apenas porque não suporta borbulhas? Já não saberão as pessoas  dominar os seus impulsos? Estas e outras interrogações ocupam neste momento o cérebro do senhor Serafim, enquanto a sua mão direita continua, voltas e mais voltas, remexendo com a colher no café com leite, num gesto mecânico, próprio de quem se esqueceu do que está a fazer.
            É então que o senhor sentado à sua frente puxa de uma pistola e dispara no peito do senhor Serafim.

4

            É quase meia-noite. O juiz Garcia revolve-se no leito sem conseguir dormir, apesar do adiantado da hora e do cansaço do corpo. Acende de novo a luz, reacende o cachimbo e semicerra os olhos, expressão muito usual no juiz Garcia quando resolve pensar em algo que o preocupa deveras.
            Esta noite o juiz Garcia não se sente nada feliz, poder-se-ia mesmo afirmar que se encontra um tanto deprimido. O julgamento de hoje no tribunal fez surgir no seu espírito um conjunto pouco homogéneo de pensamentos, constituído por recordações do tempo em que iniciou a sua carreira, algumas preocupações de natureza ética e também por vagas mas incómodas sensações de desalento. Como pessoa metódica que se habituou a ser, o juiz Garcia vai analisar os seus pensamentos um a um, começando por aqueles que lhe ocorreram em primeiro lugar, critério que utiliza habitualmente em situações semelhantes.
            O julgamento de hoje, por exemplo. Não restaram dúvidas quanto à justeza da sua decisão, o próprio condenado o reconheceu. Não, não era disso que se tratava. O problema era o réu, ou melhor, o seu desconcertante à vontade ao confessar o crime, os olhares entediados que cruzava com os jurados, a expressão indiferente com que ouviu a sentença. É nisto que pensa de momento o juiz Garcia, cachimbo na mão, enquanto um leve odor a caramelo emana subtilmente do tabaco, aconchegando os pensamentos num embalo doce, como que a chamar pelas mais queridas das recordações, aquela por exemplo em que...
            Riohacha, algures na América Latina. A pequena cidade onde começou a carreira, já lá vão mais de trinta anos. Vem-lhe agora à memória o seu primeiro grande julgamento, o dos gémeos Vicario e sua irmã abandonada no altar, mais a faca de matar porcos e a honra lavada com sangue, e o ventre de toureiro do noivo arrependido, esfaqueado uma e outra vez e mais outra ainda, tudo isto à luz do dia, bem no centro da praça principal. Lembra-se também do pacto de silêncio que a cidade celebrou, o que permitiu a absolvição dos réus, por absoluta falta de provas e total ausência de testemunhas. Ah!, que bem que sabe ao juiz Garcia recordar esses tempos, em que matar era como que a reparação de uma injustiça, realizada com honra e sem prazer, lamentada pelos homens e compreendida por Deus...
            Enquanto saboreia um último travo do cachimbo e se prepara para dormir, o juiz Garcia pega mais uma vez na pasta acastanhada que contém as actas do julgamento desse dia e relê, a páginas 327 do processo, a insólita confissão do réu:

            “Começou a mexer o café com leite com a colherzinha. O líquido quase transbordava da chávena empurrado pelo movimento do utensílio de alumínio (o recipiente era vulgar, o sítio ordinário e a colher estava arredondada pelo uso). Ouvia-se o barulho do metal contra o vidro. Tim, tim, tim, tim. E o café com leite girava, girava com uma cova no meio. Um maelstrom. E eu encontrava-me sentado mesmo à frente. O café estava à pinha. O homem continuava a mexer, a mexer, imóvel, e sorria ao olhar-me. Senti uma coisa subir por mim acima. Fitei-o de tal maneira que se viu na obrigação de se explicar:
            - O açúcar ainda não está derretido.
            Para mo provar, bateu com a colher várias vezes no fundo do copo. Recomeçou a mexer metodicamente a beberagem, com uma energia redobrada. Voltas e mais voltas, sem parar, eternamente. Voltas e mais voltas e mais voltas. E continuava a olhar para mim, sorrindo. Então puxei da pistola e disparei.” [5]

            Foi você que pediu uma consciência moral?



[1] In CAFÉ, Carlos, Entre o Prazer e o Dever — Variações em torno da moral kantiana, Portimão, Livraria Teorema, 1999, pp. 13 a 16. Este texto, originalmente designado Abertura, foi encenado pelo grupo de Teatro A Gaveta com o título, que entretanto adoptei, de Barba ou cabelo?.
[2] AUB, Max, Crimes Exemplares, Lisboa, Edições Antígona, 1995, pág. 24
[3] Idem, pág. 43
[4] Ibidem, pág. 18
[5] Ibidem, pág. 19