sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

XIII Conferência de filosofia da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes



A XIII Conferência de filosofia da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes é já no dia 3 de fevereiro. O conferencista convidado é Pedro Galvão, da Universidade de Lisboa, que apresentará e discutirá quatro perspectivas sobre os direitos dos animais. A entrada é livre.
Entretanto, em jeito de "aperitivo", deixamos aqui um conjunto de pequenos textos célebres sobre o estatuto moral dos animais.                              

            Deus, a seguir, disse: «Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa  semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra». Deus criou o homem à Sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. Abençoando-os, Deus disse-lhes: «Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra».
Bíblia, Génesis 1:24-28


            As plantas estão feitas para os animais e estes para o homem. Domesticados, prestam-lhes serviços e alimentam-no; no estado selvagem contribuem, se não todos, a maior parte pelo menos, para a sua subsistência e para satisfazer as suas diversas necessidades, fornecendo-lhe vestidos e outros recursos. Se a natureza nada faz incompleto, se nada faz em vão, é necessário admitir que tenha criado tudo isto para o homem.
 Aristóteles, filósofo grego do séc. IV a. c.


            O próprio Cristo mostra que o refreio na morte dos animais e na destruição das plantas constitui o auge da superstição, pois, julgando que não existem direitos comuns entre nós e os animais e as árvores, ele mandou os demónios habitarem uma vara de porcos e, com uma maldição, secou a árvore onde não achou fruto (...). Certamente nem os porcos nem a árvore tinham pecado.
S. Agostinho, filósofo cristão do séc. IV

 

            Não importa o modo como o homem se comporta com os animais, pois Deus submeteu todas as coisas ao poder humano e é nesse sentido que o Apóstolo diz que Deus não se preocupa com os bois, porque Deus não pede contas ao homem daquilo que este faz aos bois ou a outro qualquer animal.
S. Tomás de Aquino, filósofo cristão do séc. XIII

 

            No que diz respeito aos animais, não temos deveres diretos. Os animais não possuem autoconsciência e são apenas meios para alcançar um fim. Esse fim é o homem.
Immanuel Kant, filósofo alemão do séc. XVIII

 

Poderá existir um dia em que o resto da criação animal adquirirá aqueles direitos que nunca lhe poderiam ter sido retirados senão pela mão da tirania (...) A questão não é: Podem eles [os animais] raciocinar? Nem: Podem eles falar? Mas: Podem eles sofrer?
Jeremy Bentham, filósofo inglês do séc. XVIII

 

            Vimos já que os sentimentos e intuições, emoções diversas e faculdades tais como a amizade, a memória, a atenção, a curiosidade, a imitação, a razão, etc., de que o homem tanto se orgulha, podem observar-se em estado nascente e, por vezes, bastante desenvolvidas, nos animais inferiores.
Charles Darwin, cientista inglês do séc. XIX

 

           O domínio conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de uma liberdade de “usar e abusar”, ou de dispor das coisas como melhor agrade (...) Nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem ser impunemente transgredidas.
J. Paulo II


            Se um ser sofre, não pode haver justificação moral para recusar ter em conta esse sofrimento. Independentemente da natureza do ser, o princípio da igualdade exige que ao seu sofrimento seja dada tanta consideração como ao sofrimento semelhante (...) de um outro ser qualquer. Se um ser não é capaz de sentir sofrimento, ou de experimentar alegria, não há nada a ter em conta. Assim, o limite da senciência (capacidade de sofrer e/ou experimentar alegria) é a única fronteira defensável de preocupação relativamente aos interesses dos outros.
Peter Singer, filósofo australiano contemporâneo

Textos extraídos de Libertação Animal, de Peter Singer, Porto, Via Optima, 2000 (à excepção do excerto do Génesis)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Nietzsche, Hello Kitty e a Filosofia



NIETZSCHE, HELLO KITTY E A FILOSOFIA


            Muitas pessoas não gostam nada de filosofia. Haverá decerto boas razões para isso. Talvez não tenham gostado da disciplina na escola, por exemplo. Mas também acontece não se gostar porque se vê a filosofia como uma espécie de galeria de notáveis inacessíveis. Vou tentar mostrar neste texto que essa ideia etérea, enfadonha e quase religiosa acerca da filosofia é uma ideia errada.
Há cerca de dois anos, a zona ribeirinha de Portimão foi agitada por uma instalação intitulada Nietzsche e Hello Kitty. Era constituída por um automóvel literalmente forrado com  fotos, desenhos e páginas de livros. Lá dentro, encontravam-se diferentes e surpreendentes objetos e frases que exprimiam pensamentos do filósofo. A frase que se segue não estava lá mas poderia muito bem-estar:

NÃO SEJAS CAMELO.
PORTA-TE COMO UM LEÃO E TEM A CORAGEM DE VOLTAR A SER CRIANÇA!

Que quereria o filósofo dizer com isso do “camelo”? Estará a chamar-nos nomes? E porquê portarmo-nos como um leão? Eu até sou do Benfica... E já agora: “voltar a ser criança”? Como é isso possível? Não se vê logo que isto não tem ponta por onde se lhe pegue?! Por acaso até tem, caro leitor. Pegue numa cadeira e ouça.
Nietzsche disse mal de quase tudo, principalmente dos moralistas e dos padres. Ele próprio confessou que isso lhe dava muito gozo, mas não era por essa razão que o fazia. Nietzsche achava que a Humanidade tinha cometido um erro tremendo. O erro era este: os homens já não sabiam rir! Tinham-se convencido de que a alegria e o prazer eram coisas más e inventaram a Moral, os “bons costumes” e as religiões para terem a ilusão de que essa vida séria, cinzenta e desinteressante que eles levavam seria mais tarde recompensada. Por isso começaram a dizer mal desta vida (que para Nietzsche é a única que existe...) com a esperança de atingirem a “vida eterna”. Ou seja: tornaram-se camelos.
            O camelo é um animal de carga. Existe para levar pesos às costas e espera ser recompensado por isso. Como o moralista, portanto. Um camelo carregado é como um homem subjugado pela moral: submete-se às normas e aos deveres, despreza o corpo e o prazer e faz da vida um sofrimento absurdo. Não satisfeito com isso, o moralista diz mal dos que vivem realmente a vida. Só ergue a cabeça para desdenhar deles, dos que se divertem. Chama-lhes pecadores, irresponsáveis e coisas do género. Depois, volta à rotina bafienta a que chama virtude e lá continua ele, orgulhoso do seu calvário. Até que um dia, farto de tudo isto, o camelo se transforma em leão.
            O leão acordou. O seu rugido poderoso faz tremer tudo à sua volta: os hábitos, os valores, as Igrejas. Ninguém o domina, nada fica de pé. O leão é a revolta contra a moral e os “bons costumes”. O leão diz que tudo não passara de um erro, um longo e estúpido erro, e que, afinal, Deus não existe e que é preciso recuperar de novo a esquecida alegria de viver. Cumprida a sua missão, o leão transforma-se em criança.
            Destruídos os valores tradicionais, desmascarada a virtude, a criança que havia em nós pode agora brincar à vontade, sem sombra de pecado nem medo de castigos. Como escreveu Nietzsche, “a criança é inocência e esquecimento, um começar de novo, um jogo, uma roda que gira por si própria, um primeiro movimento, um sagrado dizer que sim.” Como a Hello Kitty, o Noddy ou Peter Pan…
            Assim falava Friedrich Nietzsche.
            Se a filosofia fosse algo parecido com uma servil veneração de espíritos brilhantes supostamente infalíveis, este artigo ficaria decerto por aqui. Mas não é. A filosofia é um exercício crítico, não uma aceitação dogmática das palavras dos “mestres”. Ler um filósofo criticamente é submetê-lo ao insubstituível tribunal da razão, ao desafio do contraditório. Darei de seguida um pequeno exemplo de como isso se faz.
            Nietzsche é um pensador fascinante. E sedutor. Como ficar indiferente a alguém que escreve coisas como “o que se faz por amor está para além do bem e do mal”? Ou ainda: “não há fenómenos morais, mas apenas uma interpretação moral de fenómenos”… Platão temia o efeito inebriante da poesia, a que chamava o “canto mágico”. Para ele, a filosofia não pode esquecer-se da avaliação crítica das teorias e argumentos dos filósofos. No caso de Nietzsche, por exemplo, há perguntas que têm de ser feitas. Eis algumas: porquê destruir todos os valores? Será que a humanidade andou adormecida e enganada durante séculos? Não servem os valores morais para, entre outras coisas, orientarmos as nossas ações e educarmos os nossos jovens? O que aconteceria se cada um de nós se reservasse o direito de, em nome da “Vida” ou do “Amor”, impor aos outros o que considera como “Bem”? Se os valores morais existentes estão errados, será que tudo é permitido?
            “Derrubar ídolos — eis o que constitui o meu ofício. Não sou um homem, sou dinamite” — gostava Nietzsche de afirmar. Sábia frase, esta. Realmente, idolatrar os pensadores e os “mestres” é um erro grave. Sabe-se que todos os ídolos têm pés de barro. E que, mais cedo ou mais tarde, alguém perceberá isso. Portanto, o melhor é mesmo submeter todas as teorias de todos os filósofos ao fogo cruzado do debate racional. A dinamite da filosofia é o debate crítico de ideias. É por esse motivo que a filosofia deve ser praticada e faz sentido celebrá-la.


Nota: este texto foi publicado pela primeira vez na edição de 19/11/09 do jornal barlavento.online

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Até onde devemos dizer a verdade? Um artigo de crítica filosófica escrito pela aluna Denise Fernandes

Denise Fernandes, a jovem autora do artigo


Até onde devemos dizer a verdade?
por

Denise Fernandes

            Até onde devemos dizer a verdade? Com que preço?
Estas foram algumas das minhas perguntas quando assisti a um episódio da série Anatomia de Grey.  Este último episódio da temporada 6 da série, começa por mostrar-nos a raiva de um homem (Gary Clark) que perdeu a mulher nas instalações do hospital onde agora se encontra. O seu objectivo é matar todos os médicos que estiveram relacionados com o que aconteceu com a sua esposa, como o chefe do hospital, a rapariga que desligou as máquinas que pôs fim à vida da sua mulher, o médico que operou e todos os que se metessem entre ele e o seu objetivo.
No decorrer do episódio, o hospital torna-se um sítio onde o pânico é geral. Miranda Bailey, uma médica, encontra-se no quarto duma paciente (Mary), quando Charles Percy, outro médico, entra no quarto dizendo que o homem com a arma se encontra no andar. Miranda diz ao colega para se esconder dentro da casa de banho e diz a Mary para fingir que está morta, e esconde-se debaixo da cama. Gary Clark entra no quarto. Após uns minutos ouve barulho dentro da casa de banho, dirige-se para lá e mata-o quando ele confirma que é médico. Sem aparente razão, Gary desconfia que alguém se encontra debaixo da cama e aí Miranda Bailey tem de enfrentá-lo. Quando Gary lhe pergunta se é médica enquanto lhe aponta uma arma à cabeça, Miranda entre soluços diz que não é médica, mas sim enfermeira, e com isto, Gary Clark pede desculpa pelo incómodo e dirige-se para a saída continuando a sua busca.
Miranda Bailey mentiu, isso é um facto. Admitindo que é errado mentir, ela agiu mal. Mas a pergunta que temos de nos fazer é: qual é o preço da verdade? Miranda mentiu porque percebeu que seria a única coisa que lhe daria a hipótese de continuar com vida. Se Charles tivesse mentido teria continuado com vida, assim como Miranda continuou.
Sinceridade, não mentir, ser verdadeiro: há excepções? Se sim, quais? Como sabemos quando estamos “autorizados” a mentir? Podemos mentir para evitar que o relacionamento acabe? Podemos mentir para evitar que fiquem com uma má imagem nossa? Uma mentirinha dada pelos pais para o filho não ficar como mau exemplo? Um médico pode mentir, se esse mentira for para o bem do paciente?
Segundo Immanuel Kant, não devemos mentir em circunstância alguma, nem para nosso próprio bem ou de alguém que amamos. Um outro filósofo, Benjamim Constante, acha o acto de não mentir um dever. Mas juntamente com o conceito de “dever” há o conceito de “direito”. E onde não há direito não há dever. Ou seja, só quem tem direito de ouvir a verdade a merece.
Penso que no caso de um assassino nos perguntar o local onde uma pessoa se encontra, nós podemos mentir, pois essa pessoa, uma vez que não respeita o dever também não tem o direito à verdade, pois entre manter a nossa honra ou a nossa vida, ou a vida de outro, devemos escolher a vida. Isto é, portanto, uma hierarquia de valores.
Arthur Schopenhauer argumenta que podemos mentir em algumas situações, desde que não haja injustiça. Temos o direito de mentir para própria protecção, pois impedir que um humano se defenda é injusto.
Qual deles está certo? Ou menos errado?
Na minha opinião, se tivesse de escolher entre as três opiniões, excluiria logo a de Kant, pois a vida é um bem que deve ser protegido e não devemos abdicar de uma vida (nossa ou de outra pessoa) só para protegermos a nossa honra.
Não concordo quando Arthur Schopenhauer diz que nós temos o direito de mentir para nos protegermos, porque se assim fosse, um assassino em tribunal estaria autorizado a mentir sobre o que realmente aconteceu para se proteger e isso seria mau para as possíveis próximas vítimas. Resta Benjamim Constante, que hierarquiza correctamente os valores, não colocando a honra primeiro que a vida.
Parece que Miranda não será julgada por ter mentido, pelo menos por alguns.

Fontes utilizadas : Grey’s Anatomy, Sanctuary

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O que é um bom professor? Diálogo imaginado entre Agostinho da Silva e um jovem filósofo

Agostinho da Silva e um dos seus inseparáveis gatos


O QUE É UM BOM PROFESSOR? 

Diálogo entre Agostinho da Silva e um Jovem Filósofo


Há uns anos li muito Agostinho da Silva. Sempre com prazer, inúmeras vezes em total desacordo. Nunca o li como um filósofo, que penso (e ele também) que não é. Recordo com carinho as Conversas Vadias na televisão, um programa singelo nos intentos e na produção, que provavelmente hoje nenhum canal pensaria sequer em pôr no ar. “Libertei-me” dele da maneira que mais aprecio: escrevendo sobre a obra. Este texto tem mais de 10 anos. Discordo frontalmente de muitas das suas palavras que escolhi para o diálogo. Agrada-me imenso tê-lo feito. Também me agrada pensar que a minha discordância lhe agradaria.

                  Uma última observação: todas as “respostas” que, neste diálogo imaginado, são atribuídas ao Professor Agostinho da Silva, constituem citações literais retiradas da sua obra Sete Cartas A Um Jovem Filósofo - Seguidas de outros documentos para o estudo de José Kertchy Navarro.


            LUÍS  Foi muito simpático da sua parte, Professor Agostinho da Silva, ter acedido ao meu pedido para que nos encontrássemos. Aqui há uns anos, era eu ainda muito jovem, passou na televisão uma série de programas com o Professor, cujo título era “Conversas Vadias”. Embora nem sempre tenha percebido tudo o que lá se dizia, lembro-me de ter gostado bastante de os ver, principalmente devido ao modo simples e acessível como o senhor falava dos assuntos. Fiquei com a ideia de que é uma pessoa serena, afectuosa e muito sábia em relação aos assuntos da vida. Por isso, como vou ser professor de filosofia, ocorreu-me que me pudesse ajudar, dando-me alguns conselhos sobre a maneira mais adequada de me relacionar com os meus futuros alunos. Pois bem, a minha dúvida é esta: afinal, o que é um bom professor?

            AGOSTINHO  Se o Luís vai ser um professor de filosofia, então, de facto, só há que desejar-lhe felicidade, e bem sabe que sinceramente o faço.

            LUÍS  Obrigado, Professor. Que me sugere desde já, em relação à filosofia?

            AGOSTINHO  Procure compreender os sistemas dos outros antes de criar um seu: se acha errado um grande filósofo, pense sempre que o erro é seu: é fora de dúvida que se não pôs e não venceu a fácil objecção que você lhe levanta (e talvez você até ao fim da vida só possa levantar fáceis objecções), é porque ela não tem razão de ser e vem dum engano seu. Estude ferozmente, com os dentes cerrados, empregue toda a sua força, estoire os músculos; ou você domina a filosofia ou a filosofia o domina a você.

            LUÍS  Não é o meu entusiasmo com a filosofia que me preocupa, mas o modo como me devo comportar na nova função que me espera, ou seja, a de professor. É que há tanta coisa errada que estou ansioso por mudar, tantos os projectos que quero pôr em prática!

            AGOSTINHO  Aqui tem você um conselho que lhe poderá servir para a sua filosofia: não force nunca; seja paciente pescador neste rio do existir. Não force a arte, não force a vida, nem o amor, nem a morte. Deixe que tudo aconteça como um fruto maduro que se abre e lança no solo as sementes fecundas.

            LUÍS  Lançar no solo “as sementes fecundas”? Não estará o Professor a esperar demasiado das pessoas? A maioria delas só liga à vulgaridade rotineira do dia-a-dia, não quer saber da ciência para nada, nem da arte, nem da filosofia...

            AGOSTINHO  Mesmo quem não estude filosofia vale muito, amigo Luís; mesmo quem não entende as funções exponenciais vale muito, amigo Luís; mesmo quem não vale nada vale muito. E não entendo os seus ares superiores.

            LUÍS  O que eu queria dizer era que, em termos culturais, essas pessoas simples nos são indiscutivelmente inferiores.

            AGOSTINHO  Inferiores porquê, inferiores em quê? Não sabem matemática? Talvez saibam viver, que é mais difícil. Não entendem filosofia? Talvez sonhem, o que é mais belo. Não têm eles, para viver, a coragem que lhe faltará um dia, talvez, a você, filósofo e sábio? Não têm eles, às vezes, a sério, com as mulheres e amigos e as filhas, as conversas que você seria incapaz de sustentar?

            LUÍS  Não me interprete mal. Eu até sou uma pessoa tolerante!

            AGOSTINHO  Entre as palavras e as ideias detesto esta: tolerância.

            LUÍS  Porquê?

            AGOSTINHO  É uma ideia de desdém; parecendo celeste, é diabólica; é um revestimento de desprezo, com a agravante de muita gente que o enverga ficar com a convicção de que anda vestida de raios de sol.

            LUÍS  Não sei se o estou a entender...

            AGOSTINHO  Porquê tolerar? Parece-me ainda pior do que perseguir. No perseguir há um reconhecimento do valor. No tolerar, somos nós os deuses e consentimos que haja, lá muito abaixo de nós, uns mesquinhos seres insignificantes.

            LUÍS  Deixe-me dizer-lhe que não estou de acordo. Tolerar também é aceitar os outros como são, respeitá-los. Não temos de amar a Humanidade inteira...

            AGOSTINHO  Não os amar vem da inferioridade sua, não da inferioridade deles. Eles são amáveis, podem ser amados; você, porém, é estreito, e não os ama. Depois disto, como se fizesse uma grande concessão, declara que os tolera. Porque o Luís, com esse bocadinho de filosofia que já aprendeu, já me vai tomando uns ares irritantes de filósofo superior e agressivo. Já declara que o não compreendem. Tome cuidado; a comédia espreita-o.

            LUÍS  Mas é precisamente isso que eu espero da filosofia, que me ajude a compreender todas estas coisas!

            AGOSTINHO  Quando nos gelamos a ponto de não entendermos os outros, de nos afastarmos deles porque os julgamos, ou realmente são, menos interessantes ou menos cultos, a filosofia só prejudica.

            LUÍS  Temos maneiras de ser muito diferentes, realmente. Eu gostaria, contudo, de aprofundar este assunto, porque me parece que tem a ver com o que, na profissão de professor, me assusta mais do que tudo o resto: a indiferença dos alunos! A experiência que tive das aulas, como estagiário, deixou-me bastante apreensivo. Já percebi que o Professor dá muita importância à relação entre as pessoas. Mas veja bem: o que é que se faz quando temos pela frente uma turma de alunos que não ligam rigorosamente nada ao que lhes estamos a dizer? Podemos estar a falar do tema mais fascinante do mundo, que para eles tanto faz! E nós insistimos: “Olhem que estes assuntos dizem-vos respeito! Não querem ficar uns ignorantes a vida inteira, pois não?” E eles? Nada, rigorosamente nada! Tanto se lhes dá como se lhes deu! E nós a gastarmos o nosso “Latim”, a tentar convencê-los de que estudar é importante, etecetra e tal... Pois bem, é o mesmo que estar a falar para as paredes! É isso que me deixa incomodado: não nos ligam nenhuma, por muito excelentes que sejam os argumentos que lhes apresentamos!

            AGOSTINHO  Você julga que alguém foi convencido por argumentos? O próprio verbo convencer se devia banir da linguagem corrente: as pessoas aderem, não são convencidas. E às suas ideias, por exemplo, hão-de aderir muito menos pelo que você pensar do que por aquilo que você for.

            LUÍS  Mas o meu papel, como professor, também é esse, o de tentar convencê-los de que a escola e o estudo são importantes para eles.

            AGOSTINHO  O essencial na vida não é convencer ninguém, nem talvez isso seja possível; o que é preciso é que eles sejam nossos amigos: para tal, seremos nós amigos deles; que forças hão-de trabalhar o mundo se pusermos de parte a amizade?

            LUÍS  Está bem, reconheço que a afectividade é importante na relação professor/aluno. Mas eles também devem ver as coisas de um ponto de vista racional; caso contrário, acabam por só estudar a matéria das disciplinas em que têm um professor de que gostam! É por isso que eu dou muita importância aos argumentos: é através deles que o aluno compreende, de modo mais imparcial e menos afectivo, que aquilo que se aprecia mais nem sempre é o mais importante.

            AGOSTINHO  Se lhes for com argumentos, é fatal que ao terceiro que não aceitem ou não compreendam (e você ficará sempre convencido de que não aceitam porque não compreendem), o Luís esteja pensando que se encontra a falar com os mais perfeitos imbecis que têm existido no mundo; ao quarto argumento, todo você freme, mal se contendo: no entanto, lembra-se do estoicismo e ainda aguenta; mas ao quinto argumento, você insulta-os. As consequências desvantajosas são as seguintes, e pondo de seguro que não é consequência desvantajosa eles ficarem na mesma: você fica mal disposto, não foi nada filosófico, azeda cada vez mais, e os homens passam a aborrecê-lo, talvez mesmo a odiá-lo.

            LUÍS  Se os meus alunos me odiarem, que posso eu fazer? Eu estou na escola para ensinar, antes de mais, e não para fazer amizade com todos os alunos. É natural que muitos deles não gostem de mim, até porque eu não lhes “aparo o jogo” e, além disso, obrigo-os a trabalhar! É para isso que me pagam, não é verdade? Quanto ao resto, digo-o sinceramente, pouco me importa...

            AGOSTINHO  Que lhe importa? Mas importa muito, importa tudo. Você veio aqui para separar ou para unir?

            LUÍS A principal preocupação de um filósofo deve ser a busca da verdade!

            AGOSTINHO  E julga que a verdade precisa de si para alguma coisa? Se o mundo é segundo o modelo idealista, continuará sendo, mesmo que os outros ou você o neguem; se não for, também nada se remedeia. E o mesmo com o kantismo e o pessimismo e o positivismo e tudo o restismo.

            LUÍS  Ainda que assim seja, tal não significa que deixemos de a procurar. Mas eu vou ser franco, Professor: se pudesse, escolheria não ter de dar aulas. Agrada-me muito mais estudar filosofia do que ter de ensiná-la.

            AGOSTINHO  Repito o que lhe disse: quando se perde humanidade, não vale a pena ser filósofo. Você, pelo que me parece, tem certos germes de afastamento: há, por vezes, no meio de todas as suas afabilidades, um certo tom superior, uma distância, uma reserva, uma vaidade que é tudo quanto você quiser menos filosófica e um gosto de inteligência a que se não une uma forte afectividade. Temo que o hábito dos filósofos e a vantagem terrível de os perceber com clareza lhe agrave esses defeitos e nos traga daqui a uns anos um Luís impossível, cheio de si e das suas pobres verdades.

            LUÍS  O Professor desculpe, mas tudo isso é muito lindo até ao momento em que temos de enfrentar uma turma enorme, constituída por alunos que não percebem “patavina” do que lhes estamos a dizer. A dura realidade é mesmo assim! O que me sugere que faça, em situações desse tipo?

            AGOSTINHO  Seja sereno, seja afectuoso, se lhe pedirem que explique, explique trinta vezes, com a mesma calma e o mesmo interesse da primeira; se o não perceberem a você, perceba você os outros.

            LUÍS  Se calhar, o preço a pagar pela nossa dedicação ao estudo é precisamente esse: ficarmos sós e incompreendidos...

            AGOSTINHO  Mas há duas espécies de solidão: uma, que vem de não acompanharmos os outros, outra que vem de nos não acompanharem eles; a segunda é que vale.

            LUÍS  O Professor parece esquecer que, quando alguém se destaca, são mais as invejas que suscita do que os apoios que recebe...

            AGOSTINHO  É preciso que os homens à sua volta nunca tenham nenhuma angústia, não sofram nunca por o sentirem a você superior a eles; a sua superioridade, se existir, deve ser como um bálsamo nas feridas, deve consolá-los, aliviar-lhes as dores. A sua grandeza, querido amigo, deve servir para os tornar grandes, no que lhes é possível, não para os humilhar, para os lançar no desespero, no rancor, na inveja.

            LUÍS  Olhe que a Escola é um meio muito complicado, quando se trata de méritos e invejas...

            AGOSTINHO  Há muitos meios, amigo Luís, em que é muito difícil não tomar grandes ares, ou porque tudo à volta é bastante inferior ou porque os muros de orgulho se levantam como um castelo de defesa.

            LUÍS  Mas voltemos à questão do relacionamento com os alunos. Ainda que o faça da maneira que o Professor defende, haverá sempre uns que “crescem” mais do que os outros. Ou não será?

            AGOSTINHO  Para o pai não existe a sua própria altura, existe a pequenez dos filhos; e por isso os pais se curvam para eles, e os acariciam e os tomam nos braços, e já são grandes, Luís, e descobrem, erguidos ao alto, os horizontes que o pai nem sonha.

            LUÍS  Até parece que, para si, ninguém é pequeno...

            AGOSTINHO  É verdade, querido amigo: nada é pequeno, se o levantarmos, utilizando toda a nossa altura, e toda a nossa força, se o levantarmos acima de nós, o mais que pudermos, até quase não suportarmos as dores nos músculos. Vai ser esta para você a mais difícil de todas as artes, mas oxalá não lhe faltem os recursos afectivos que não deixem ter a sua inteligência o aspecto seco, repulsivo, de tanta inteligência superior.

            LUÍS  Ou seja: não basta a competência como professor, também é preciso sermos o amigo, o “pai”, o companheiro... Não estará a exigir muito de mim?

            AGOSTINHO  Estou a exigir muito de si? Quem lhe há-de exigir muito senão os seus amigos? Eles receberam o encargo de não o deixar amolecer e, pela minha parte, tenha você a certeza de que o hei-de cumprir. Você há-de dar tudo o que puder. Quando você saltar e saltar bem, eu direi sempre: Agora mais alto! Que me importa que você caia. O que é preciso é que você se levante. Os fracos vieram só para cair, mas os fortes vieram para esse tremendo exercício: cair e levantar-se; sorrindo.

            LUÍS  O que o Professor diz soa bem, mas não será um tanto utópico?

            AGOSTINHO  Só há homem quando se faz o impossível; o possível todos os bichos fazem.

            LUÍS  Bom, parece que esta conversa, que era para ser muito curta, acabou mesmo por se estender, sem que tivéssemos dado conta disso. Gostei muito de o ouvir, Professor, e agradeço-lhe mais uma vez a simpatia e a atenção que me dispensou. Vou decerto pensar muito em tudo o que me disse. Mas permita-me que volte à pergunta inicial: afinal, o que é preciso para se ser um bom professor?

            AGOSTINHO  Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que valem mais todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles forem meus, não seus.

            LUÍS  Se assim é, que faço eu com os conselhos que me deu?

            AGOSTINHO  Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence.

            LUÍS  Que estranho! Quase todas as pessoas gostam de ter discípulos, mas o Professor dá conselhos para não serem seguidos...

            AGOSTINHO  São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem. Feche, pois, os ouvidos ao que lhe ensino, se alguma coisa lhe ensino; faça a viagem por sua conta e risco, você mesmo ao leme; se tivermos naufrágio, far-lhe-emos uma Elegia marítima: duas páginas de versos todos cheios do ritmo das vagas e desse estranho soluçar do vento nos altos mastros dos navios.


FIM DO DIÁLOGO