quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Nietzsche, Hello Kitty e a Filosofia



NIETZSCHE, HELLO KITTY E A FILOSOFIA


            Muitas pessoas não gostam nada de filosofia. Haverá decerto boas razões para isso. Talvez não tenham gostado da disciplina na escola, por exemplo. Mas também acontece não se gostar porque se vê a filosofia como uma espécie de galeria de notáveis inacessíveis. Vou tentar mostrar neste texto que essa ideia etérea, enfadonha e quase religiosa acerca da filosofia é uma ideia errada.
Há cerca de dois anos, a zona ribeirinha de Portimão foi agitada por uma instalação intitulada Nietzsche e Hello Kitty. Era constituída por um automóvel literalmente forrado com  fotos, desenhos e páginas de livros. Lá dentro, encontravam-se diferentes e surpreendentes objetos e frases que exprimiam pensamentos do filósofo. A frase que se segue não estava lá mas poderia muito bem-estar:

NÃO SEJAS CAMELO.
PORTA-TE COMO UM LEÃO E TEM A CORAGEM DE VOLTAR A SER CRIANÇA!

Que quereria o filósofo dizer com isso do “camelo”? Estará a chamar-nos nomes? E porquê portarmo-nos como um leão? Eu até sou do Benfica... E já agora: “voltar a ser criança”? Como é isso possível? Não se vê logo que isto não tem ponta por onde se lhe pegue?! Por acaso até tem, caro leitor. Pegue numa cadeira e ouça.
Nietzsche disse mal de quase tudo, principalmente dos moralistas e dos padres. Ele próprio confessou que isso lhe dava muito gozo, mas não era por essa razão que o fazia. Nietzsche achava que a Humanidade tinha cometido um erro tremendo. O erro era este: os homens já não sabiam rir! Tinham-se convencido de que a alegria e o prazer eram coisas más e inventaram a Moral, os “bons costumes” e as religiões para terem a ilusão de que essa vida séria, cinzenta e desinteressante que eles levavam seria mais tarde recompensada. Por isso começaram a dizer mal desta vida (que para Nietzsche é a única que existe...) com a esperança de atingirem a “vida eterna”. Ou seja: tornaram-se camelos.
            O camelo é um animal de carga. Existe para levar pesos às costas e espera ser recompensado por isso. Como o moralista, portanto. Um camelo carregado é como um homem subjugado pela moral: submete-se às normas e aos deveres, despreza o corpo e o prazer e faz da vida um sofrimento absurdo. Não satisfeito com isso, o moralista diz mal dos que vivem realmente a vida. Só ergue a cabeça para desdenhar deles, dos que se divertem. Chama-lhes pecadores, irresponsáveis e coisas do género. Depois, volta à rotina bafienta a que chama virtude e lá continua ele, orgulhoso do seu calvário. Até que um dia, farto de tudo isto, o camelo se transforma em leão.
            O leão acordou. O seu rugido poderoso faz tremer tudo à sua volta: os hábitos, os valores, as Igrejas. Ninguém o domina, nada fica de pé. O leão é a revolta contra a moral e os “bons costumes”. O leão diz que tudo não passara de um erro, um longo e estúpido erro, e que, afinal, Deus não existe e que é preciso recuperar de novo a esquecida alegria de viver. Cumprida a sua missão, o leão transforma-se em criança.
            Destruídos os valores tradicionais, desmascarada a virtude, a criança que havia em nós pode agora brincar à vontade, sem sombra de pecado nem medo de castigos. Como escreveu Nietzsche, “a criança é inocência e esquecimento, um começar de novo, um jogo, uma roda que gira por si própria, um primeiro movimento, um sagrado dizer que sim.” Como a Hello Kitty, o Noddy ou Peter Pan…
            Assim falava Friedrich Nietzsche.
            Se a filosofia fosse algo parecido com uma servil veneração de espíritos brilhantes supostamente infalíveis, este artigo ficaria decerto por aqui. Mas não é. A filosofia é um exercício crítico, não uma aceitação dogmática das palavras dos “mestres”. Ler um filósofo criticamente é submetê-lo ao insubstituível tribunal da razão, ao desafio do contraditório. Darei de seguida um pequeno exemplo de como isso se faz.
            Nietzsche é um pensador fascinante. E sedutor. Como ficar indiferente a alguém que escreve coisas como “o que se faz por amor está para além do bem e do mal”? Ou ainda: “não há fenómenos morais, mas apenas uma interpretação moral de fenómenos”… Platão temia o efeito inebriante da poesia, a que chamava o “canto mágico”. Para ele, a filosofia não pode esquecer-se da avaliação crítica das teorias e argumentos dos filósofos. No caso de Nietzsche, por exemplo, há perguntas que têm de ser feitas. Eis algumas: porquê destruir todos os valores? Será que a humanidade andou adormecida e enganada durante séculos? Não servem os valores morais para, entre outras coisas, orientarmos as nossas ações e educarmos os nossos jovens? O que aconteceria se cada um de nós se reservasse o direito de, em nome da “Vida” ou do “Amor”, impor aos outros o que considera como “Bem”? Se os valores morais existentes estão errados, será que tudo é permitido?
            “Derrubar ídolos — eis o que constitui o meu ofício. Não sou um homem, sou dinamite” — gostava Nietzsche de afirmar. Sábia frase, esta. Realmente, idolatrar os pensadores e os “mestres” é um erro grave. Sabe-se que todos os ídolos têm pés de barro. E que, mais cedo ou mais tarde, alguém perceberá isso. Portanto, o melhor é mesmo submeter todas as teorias de todos os filósofos ao fogo cruzado do debate racional. A dinamite da filosofia é o debate crítico de ideias. É por esse motivo que a filosofia deve ser praticada e faz sentido celebrá-la.


Nota: este texto foi publicado pela primeira vez na edição de 19/11/09 do jornal barlavento.online

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