sábado, 19 de janeiro de 2013

“Rachei-a de alto a baixo, como um animal, porque ela contava as moscas no tecto enquanto fazíamos amor.” O que diria disto um subjectivista moral?


Pode um livro ser um auxiliar poderoso nas aulas de filosofia? Pode, tal como o cinema, a arte ou as notícias, por exemplo.
Vem isto a propósito de um livrinho que gosto de levar para as minhas aulas quando discutimos o tema da natureza dos juízos morais. Trata-se de “Crimes Exemplares”, de Max Aub, editado em Portugal pela Antígona.


Como faço habitualmente, apresentei o problema de maneira pouco convencional, na expectativa de captar a atenção dos alunos e os levar a aperceberem-se das perplexidades que nos surgem quando pensamos criticamente nestes assuntos. A estratégia foi ler alguns dos micro-contos de que o livro é feito, nos quais homicidas condenados apresentam os motivos que os levaram a cometer os seus crimes. Aqui ficam dois. O caso estranho deste barbeiro, por exemplo:

“Sou barbeiro. É uma coisa que pode acontecer a qualquer pessoa. Quero dizer que até esse dia fui um bom barbeiro. Cada qual tem as suas manias, eu não gosto de borbulhas.
Aconteceu assim: comecei a barbeá-lo calmamente, ensaboei-o com habilidade, afiei a navalha no braço da cadeira e suavizei-a na palma da mão. Sou um bom barbeiro! Nunca cortei ninguém e ainda por cima esse tipo não tinha uma barba muito espessa. Mas tinha borbulhas. Devo reconhecer que nas suas borbulhas não havia nada de especial, no entanto, incomodavam-me, enervavam-me, revolviam-me as tripas.
A primeira, contornei-a bem, sem grande dificuldade, mas a segunda começou a sangrar. Então, não sei o que me deu, acho que é uma coisa muito natural, aprofundei a ferida e depois, sem poder deixar de o fazer, com um só golpe, cortei-lhe a cabeça.”

Ou este trágico desenlace que começa com uma inocente colherzinha:

“Começou a mexer o café com leite com a colherzinha. O líquido quase transbordava da chávena empurrado pelo movimento do utensílio de alumínio (o recipiente era vulgar, o sítio ordinário e a colher estava arredondada pelo uso). Ouvia-se o barulho do metal contra o vidro. Tim, tim, tim, tim. E o café com leite girava, girava com uma cova no meio. Um maelstrom. E eu encontrava-me sentado mesmo à frente. O café estava à pinha. O homem continuava a mexer, a mexer, imóvel, e sorria ao olhar-me. Senti uma coisa subir por mim acima. Fitei-o de tal maneira que se viu na obrigação de se explicar:
- O açúcar ainda não está derretido.
Para mo provar, bateu com a colher várias vezes no fundo do copo. Recomeçou a mexer metodicamente a beberagem, com uma energia redobrada. Voltas e mais voltas, sem parar, eternamente. Voltas e mais voltas e mais voltas. E continuava a olhar para mim, sorrindo. Então puxei da pistola e disparei.”

Podemos encontrar este e outros oito contos adaptados para o cinema na curta-metragem “Menos 9” (Portugal, 1999), de Rita Nunes.



Tudo isto vem a propósito do subjectivismo moral. Uma teoria que defende que os juízos morais dependem da perspectiva de cada sujeito (são subjectivos), ou seja, que em Ética não há verdades universais, cada pessoa tem a sua «verdade». O argumento principal desta teoria pode ser sintetizado assim:

Um juízo moral exprime os sentimentos e convicções da pessoa sobre o assunto em causa; as pessoas são diferentes umas das outras; logo, os juízos morais são subjectivos.

À primeira vista, e como aspecto positivo, o subjectivismo moral parece promover a tolerância. De facto, se o que é moralmente «certo» ou «errado» depende dos sentimentos de cada pessoa e se os sentimentos de uma não são melhores nem piores que os de outra, conclui-se que devemos ser tolerantes para com os juízos morais dos outros.
Contudo, são decerto em maior número as dificuldades que nos coloca quando imaginamos as consequências da sua aplicação na vida em sociedade. Vejamos algumas objecções possíveis.

Se o subjectivismo está certo, qualquer juízo moral é verdadeiro. De facto, se os juízos morais dependem apenas da perspectiva de cada sujeito, então nenhum juízo moral pode ser considerado errado, por mais repugnante que seja, uma vez que para quem o defende ele é verdadeiro. Vista assim, a Ética é completamente arbitrária.
Em segundo lugar, a educação moral, tal como a entendemos, deixa de fazer sentido. Educar é transmitir determinados valores considerados «bons» em detrimento de outros considerados «maus». Ora, se cada um ajuíza à sua maneira os factos morais, para quê educar? Quando muito, um subjectivista consequente poderia dar este conselho: «ajuíza de acordo com os teus sentimentos e terás sempre razão».
Finalmente, o debate de ideias sobre assuntos morais tornar-se-ia desnecessário. Se toda a gente tem a sua «verdade», de que serve discutir problemas e confrontar argumentos? Numa sociedade organizada de acordo com o subjectivismo moral, a disciplina de Filosofia decerto não existiria…

São estas e outras questões filosóficas com elas relacionadas que andaremos, eu e os meus alunos, a discutir nas próximas aulas. Pelo menos enquanto não acabarem com a disciplina no secundário...