segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Será que somos livres? Uma entrevista imaginária a Jean-Paul Sartre



Este é o primeiro texto em diálogo que escrevi para os meus alunos com o objectivo de explicar de forma mais atraente as teorias dos filósofos. A minha filha Maria Miguel (o nome da "entrevistadora"), tinha na altura cerca de seis meses. 
A Maria Miguel está agora no 10º ano e fez hoje teste de Filosofia sobre o problema do livre arbítrio. Sei que falou de Sartre, a propósito do libertismo. 
It´s a wonderful life, isn't it? 



Será que somos livres?

Uma entrevista imaginária a Jean-Paul Sartre

ESCLARECIMENTOS PRÉVIOS:

            Este diálogo nunca existiu. O seu autor inventou-o com a intenção de tornar mais acessível o pensamento do filósofo. As “respostas” de Sartre refletem sempre os seus pontos de vista. A esmagadora maioria delas foram realmente por ele proferidas, num contexto muito semelhante ao deste diálogo. Quando a citação é literal, surge em itálico.

           
Maria Miguel: Obrigado por ter acedido a participar neste diálogo “faz de conta”. Vou aproveitar para satisfazer a minha curiosidade e, ao mesmo tempo, esclarecer as dúvidas com que se deparam normalmente os jovens da minha idade quando, nas aulas de filosofia, estudam as suas teorias. Posto isto, eis a primeira pergunta: qual é o ponto de partida do existencialismo?
Sartre: A existência precede a essência.
            Maria Miguel: Que significa...
            Sartre: Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo, e que só depois se define. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. O homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo.
            Maria Miguel: Cada um decide e é responsável por aquilo que é, pelas suas escolhas. Mas parece-me que assim ficamos todos muito desamparados...
            Sartre: Quando se fala em desamparo, queremos dizer somente que Deus não existe e que é preciso tirar disso as mais extremas consequências.
            Maria Miguel: Como por exemplo...
            Sartre: O existencialista pensa que é muito incomodativo que Deus não exista, porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível. Dostoiewsky escreveu: «Se Deus não existisse, tudo seria permitido». Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue.
            Maria Miguel: Assim ficamos sem desculpas se as nossas escolhas não forem boas!
            Sartre: Exato. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre.
            Maria Miguel: “Condenado a ser livre”? Parece-me uma contradição! Como pode um condenado ser livre? Importa-se de me explicar?
            Sartre: Condenado, porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque uma vez lançado ao mundo é responsável por tudo quanto fizer.
            Maria Miguel: O senhor defende o contrário de uma corrente filosófica que estudámos nas nossas aulas de Filosofia. Refiro-me ao Estoicismo, para quem tudo acontece porque tem de acontecer, sem que possamos fazer nada contra isso. A mim parece-me um convite a que fiquemos quietos a um canto sem lutar por nada...
Sartre: O quietismo é a atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer aquilo que eu não posso fazer. A doutrina que vos apresento é justamente oposta ao quietismo, visto que ela declara: só há realidade na ação. E vai aliás mais longe, visto que acrescenta: o homem não é senão o seu projeto, só existe na medida em que se realiza, não é portanto nada mais do que o conjunto dos seus atos, nada mais do que a sua vida.
Maria Miguel: Essa sua teoria deve ser muito agradável para as pessoas que têm uma vida preenchida, bem sucedida e feliz. E os outros?
Sartre: Podemos compreender por que a nossa doutrina causa horror a um certo número de pessoas. Porque muitas vezes não têm senão uma única maneira de suportar a sua miséria, isto é, pensar ‘as circunstâncias foram contra mim, eu valia muito mais do que aquilo que fui. É certo que não tive um grande amor ou uma grande amizade, mas foi porque não tive tempo livre para o fazer. Não tive filhos a quem me dedicasse, mas foi porque não encontrei o homem com quem pudesse realizar aminha vida.’
Maria Miguel: Acho que percebi. Dito de outra forma: a nossa vida é um livro em branco que nós próprios vamos escrevendo e de que somos os únicos autores!
Sartre: Evidentemente, este pensamento pode parecer duro a alguém que não tenha vencido na vida. Mas por outro lado, ele dispõe as pessoas à compreensão de que só conta a realidade, que os sonhos, as expectativas, as esperanças apenas permitem definir um homem como sonho malogrado, como esperança abortada, como expectativa inútil.
Maria Miguel: Ou seja, as pessoas definem-se pela positiva, pelo que fazem realmente, e não por tudo aquilo que acham que poderiam ter feito mas não fizeram.
Sartre: Quando um existencialista descreve um cobarde, diz que esse cobarde é responsável pela sua cobardia. Não é ele cobarde por ter um coração, pulmões ou um cérebro cobardes, não é a partir duma organização fisiológica, mas sim porque se construiu como cobarde pelos seus atos. Não há temperamentos cobardes. Um temperamento não é um ato. O cobarde é definido a partir do ato que praticou.
Maria Miguel: Há quem pense que já se nasce cobarde ou herói. Os filósofos estoicos defendiam isso.
Sartre: E no fundo é isso que muitas pessoas desejam pensar. Se nascestes cobardes, ficareis perfeitamente tranquilos, nada podereis contra isso, sereis cobardes toda a vida, façais vós o que fizerdes. Se nascestes heróis também continuareis perfeitamente tranquilos, haveis de ser heróis toda a vida, bebereis como um herói, comereis como um herói. O que diz o existencialista é que o cobarde se faz cobarde, o herói se faz herói. Há sempre uma possibilidade para o cobarde de já não ser cobarde, como para o herói de deixar de o ser.
Maria Miguel: Somos livres, portanto, de criar a nossa personagem...
Sartre: Devemos comparar a escolha moral com a construção de uma obra de arte. Acaso se censurou já um artista que faz um quadro por não se inspirar em regras estabelecidas a priori? Já se disse alguma vez qual o quadro que ele deve fazer? Sabemos bem que não há um quadro definido a fazer, que o artista se aplica à construção do seu quadro, e que o quadro a fazer é precisamente o que ele tiver feito. O que há de comum entre a arte e a moral é que, nos dois casos, temos criação e invenção.
Maria Miguel: Bom, parece que chegámos ao fim da entrevista. Quero agradecer a presença de monsieur Jean-Paul Sartre e pedir-lhe desculpa pelo incómodo de o termos “ressuscitado” com o nobre objectivo de nos explicar as suas teorias filosóficas.
Sartre: Ora essa, o prazer foi todo meu! Para além da “ressuscitação” (uma experiência muito estranha para mim, um ateu que não acredita na imortalidade...), a verdade é que me agradou imenso a entrevista, pois já não conversava com alguém há muito tempo...
Maria Miguel: E pronto! Resta-me despedir de todos, mas antes vou aproveitar para apresentar um lamento. Com efeito, depois de ter participado tão ativamente num diálogo que teve como tema principal a liberdade, é com tristeza que sou obrigada a reconhecer que, afinal, não tenho uma existência livre e autónoma, uma vez que não passo de uma personagem de ficção, totalmente controlada pelo indivíduo que me inventou. Por mais de uma vez tentei exprimir-me com erros ortográficos (por “caprixo”), e o máximo que consegui, como se pode ver, aparece-vos assim exibido, como um qualquer bichinho em riscos de extinção, uma espécie de lince da Malcata em versão ortográfica, humilhado por umas miseráveis aspas e enclausurado em intransponíveis parêntesis. Também não me é permitido despedir-me como desejava, e que seria assim: hey guys: como já leram este diálogo a fingir, escusam de ler os livros a sério! A isso chamaria eu um grand final! Mas o desmancha-prazeres do meu criador (que me autoriza a chamá-lo deste modo só para parecer magnânimo...), o meu criador, dizia eu, decidiu que as minhas últimas palavras serviriam para vos informar que as citações em itálico foram retiradas da obra de Jean-Paul Sartre intitulada O Existencialismo é um Humanismo, obra essa que (é ele quem o diz, claro!...) vocês não devem deixar de consultar.
            E assim me despeço, não sei se até à próxima. Adieu!

Maria Miguel



terça-feira, 20 de novembro de 2012

O Lado Selvagem (Into The Wild), a propósito do Dia Mundial da Filosofia


Na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes cultivamos algumas boas tradições. Escrever textos originais sobre um tema e divulgá-los aos alunos e à comunidade escolar é uma delas. 
Este ano cada professor de Filosofia escreveu sobre um filme por si escolhido. O meu texto (que também estará disponível no blogue oficial do grupo) foi sobre este filme de que gosto muito.

O LADO SELVAGEM (Into The Wild)
Realização: Sean Penn

“Olá amigos!
Esta é a última comunicação que receberão de mim. Vou agora partir para viver no meio da natureza. Cuidem-se, foi muito bom conhecer-vos.”
Alex (Chris McCandless)

A filosofia nasce do espanto, escreveu um dia Aristóteles. Elogiava deste modo a interrogação crítica, o olhar outro que põe em causa a glorificação do olhar “normal”, do pensar o “mesmo”. Num sentido idêntico, Platão celebrou o prisioneiro que se liberta da vida falsa da “caverna”, ou seja, aquele que tem a ousadia de se interrogar e pôr em causa o que parece evidente. Também Descartes dizia que viver sem filosofar era como “ter os olhos fechados sem nunca se esforçar por os abrir”. A filosofia faz-nos pensar e há uma forma de pensar que só existe na filosofia. E há filmes que nos fazem pensar como na filosofia. O Lado Selvagem é um desses filmes.
O Lado Selvagem é um filme que nasce de um livro. Diz Sean Penn, o realizador: Vi a capa do livro. Peguei nele e acabei por o ler todo nessa noite, por duas vezes. Bem cedo, na manhã seguinte, levantei-me e comecei desde logo a tentar obter os direitos do filme. E isso tornou-se numa espécie de namoro de dez anos.” O livro em causa tinha sido escrito por Jon Krakauer, um jornalista americano que dele afirmou ter sido “o único trabalho escrito que me deu realmente prazer ao fazê-lo.” Quando, finalmente, Sean Penn consegue os direitos para realizar o filme, telefona ao seu amigo Eddie Vedder, vocalista dos Pearl Jam, e desafia-o a escrever a banda sonora do filme. Ele aceita e compõe assim o seu primeiro álbum a solo, que viria a receber um globo de ouro.
Chris McCandless é o elo de ligação entre o livro, o filme e o álbum. Filho de um famoso engenheiro aeroespacial, de classe média alta americana, Chris conclui o curso na Universidade de Emory, em Atlanta, em Maio de 1990, com boas notas. No dia da cerimónia de entrega dos diplomas, almoçando com os pais e a irmã, informa-os de que pretende fazer uma das suas habituais viagens solitárias: “acho que vou desaparecer por algum tempo”, são exactamente as suas palavras. Rejeita mais uma vez a oferta de um novo carro (“O meu Datsun de 82 está em muito bom estado, para que quero eu um carro novo?”), doa os cerca de 25 mil dólares que tem na sua conta a uma associação dedicada à luta contra a pobreza e faz-se de novo à estrada, iniciando uma autêntica odisseia rumo ao Alasca. Deixará tudo para trás - família, amigos, até o nome. Passará a responder pelo nome de Alexander Supertramp.
Chris era um apaixonado pela literatura. Segundo a irmã, gostava de utilizar citações dos seus escritores preferidos nas mais variadas situações. Sabemos que ofereceu livros a amigos que conheceu na sua aventura e, no filme, são utilizadas com frequência passagens retiradas dos seus livros preferidos. Adorava em Lev Tolstoi, o grande escritor russo, o despojamento e o elogio de um estilo de vida simples, sem luxos nem gastos desnecessários e a forte ligação à natureza. Identificava-se com Jack London, o célebre escritor americano, que abandonou a escola e saiu de casa aos 14 anos, tendo sido um autêntico Supertramp (super vagabundo), viajando pelos EUA e pelo mundo. Fascinado pela autenticidade selvagem do Alasca, Jack London critica duramente a sociedade capitalista e a importância que as pessoas atribuem ao dinheiro, defendendo um estilo de vida intenso, solidário, simples, autêntico e próximo da natureza. Sobre ele escreverá Chris num pedaço de madeira: “Jack London é o Rei.” Outro dos escritores preferidos de Chris era Henry David Thoreau. Thoreau foi um escritor e pensador ecológico americano que, insatisfeito com a sua vida em sociedade, tomou, aos 38 anos, a decisão de ir morar no meio da floresta, nas margens do lago Walden, numa casa construída por si próprio. Apesar de inexperiente como agricultor, tentou a auto-suficiência, plantando batatas e produzindo inclusive o seu próprio pão. Segundo as suas próprias palavras, foi viver para a floresta porque queria viver intensamente a vida, “em vez de descobrir, à hora da morte, que não tinha vivido”. No filme, Chris cita Thoreau ao afirmar: “Mais do que amor, dinheiro, fama, dêem-me verdade”.
A maior parte das informações sobre o que aconteceu a Chris McCandless foi retirada do seu diário e de testemunhos dos amigos que fazia com naturalidade. Sabemos que utilizou o seu Datsun (que abandonou mais tarde), andou à boleia, em comboios de carga, de canoa, normalmente sem ter um rumo definido. Escreveu no seu diário: “É nas experiências, nas memórias, na enorme alegria triunfante de viver até ao limite, que se encontra o verdadeiro significado.” Uma das pessoas com quem se cruzou diria dele o seguinte: “Acho que se meteu em sarilhos porque pensava de mais. Esforçava-se demasiado por entender o mundo, por compreender a razão que levava as pessoas a serem tão más umas para as outras.” Não sei se Chris “pensava de mais” ou não. Mas o filme inspirado na sua vida dá decerto que pensar. Apresentarei de seguida algumas interrogações filosóficas, na sua maior parte relacionadas com o problema do sentido da vida, que o filme pode suscitar.
Chris McCandless afirma no filme: «A essência do espírito humano vem de experiências novas». Até que ponto a aventura é importante na vida humana? Chris quis testar os seus limites. Deve haver limites a esse desejo de pôr à prova os nossos limites? Durante a maior parte do filme, Chris parece estar convencido de que a obtenção da felicidade individual é incompatível com a vida em sociedade. Será mesmo? Será que a família é indispensável à felicidade individual? Chris entra em ruptura com os pais por não se identificar com os seus valores e estilo de vida. Como avaliar a sua decisão de nunca mais contactar a família, nem sequer a sua irmã? E ainda: será que a nossa vida é mais rica quando temos mais coisas, dinheiro e conforto? Será que uma vida mais próxima da natureza é mais autêntica do que uma vida mais urbana?
Para terminar, escolhi um excerto da letra de Long Nights, a minha música preferida da banda sonora composta por Eddie Vedder. Faz-me sempre imaginar como seriam as noites solitárias de Chris McCandless. Aquela, por exemplo, em que (sabemo-lo pelo seu diário) “recebeu a chegada do novo ano a observar a lua cheia que se elevava sobre o Gran Desierto”:

Have no fear
For when I'm alone
I'll be better off
 Than I was before

I've got this life
I'll be around to grow
Who I was before
I cannot recall

I've got this life
And the will to show
I will always be
Better than before



(A música Long Nights, ilustrada com imagens do próprio Chris McCandless, pode ser ouvida aqui.)

sábado, 10 de novembro de 2012

Síndrome de Tourette e o problema filosófico da definição de ação

Os tiques involuntários são uma das características do síndrome de Tourette

Ontem referi nas aulas do 10º ano alguns casos de fronteira que nos levam a questionar a definição de ação como algo que é feito pelo agente com intencionalidade, de modo voluntário.
Despertou nos alunos especial curiosidade o síndrome de Tourette, cuja designação tem origem em Gilles de la Tourette, o médico francês que em 1885 publicou pela primeira vez um artigo científico sobre o tema.
Para quem estiver interessado em continuar a explorar o assunto, deixo aqui algo mais. 
Em primeiro lugar, o impressionante testemunho real de John Davidson, um jovem adolescente britânico de 16 anos portador do síndrome de Tourette, que nos conta na primeira pessoa a sua própria experiência por vezes tão difícil. Chamo a especial atenção para a parte do documentário em que John e a sua mãe são filmados numa visita ao supermercado. Mais informação sobre esta doença neurológica podem ser encontradas aqui.  


A segunda parte do documentário, centrada no dia a dia na escola, pode ser vista aqui, enquanto que a terceira e última parte, destacando a vida em família, se encontra aqui.

E agora uma sugestão de leitura. Trata-se do livro O Homem que Confundiu a Mulher Com Um Chapéu, de Oliver Sacks, uma coleção de histórias verdadeiras de doentes com esquizofrenia, Parkinson, Alzheimer, autismo e síndrome de Tourette, entre outras. 


Oliver Sacks é um famoso médico neurologista e escritor com inúmeras obras escritas e traduzidas em muitos países, com adaptações ao teatro e ao cinema. Uma pequena nota biográfica sobre este fascinante médico-escritor pode ser lida aqui.

Por hoje é tudo. Voltaremos a este assunto a propósito do problema filosófico do livre arbítrio.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Deus existe? Um artigo de crítica filosófica de Adriano Martins

O jovem autor,
aluno na
Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes,
em Portimão


Deus existe?
por
Adriano Martins

A existência de Deus é um tema que desde sempre tem gerado muita polémica. O que se sabe é que ainda não existem factos claros que provem a sua existência ou inexistência. Por isso, até aos dias de hoje muita gente tem tentado apurar respostas para este problema filosófico.
Para realizar este texto baseei-me numa música chamada “Revelação”, de Valete, em que o rapper português nos mostra a sua perspectiva sobre este tema (não acredita na existência de Deus), simulando um diálogo entre um ateu, que apresenta argumentos contra a existência de Deus, e Deus, que apresenta argumentos a favor da sua própria existência.
O ateu apresenta argumentos como o “desprezo” que Deus dá a muitos que acreditam n’ Ele e seguem os seus mandamentos e, ainda, a existência de mal no mundo e na história da humanidade, fazendo referência a grandes massacres (2ª guerra mundial e guerra civil de Ruanda) e à fome e doenças existentes no mundo. Já Deus, “tentando vender o seu peixe”, diz que deu livre arbítrio aos Homens e que não pode interferir na vida das pessoas, apenas pode fazer o julgamento final e decidir quem merece o inferno e quem merece o paraíso.
Os argumentos do ateu encaixam na perfeição com a tese da existência do mal, que refere que a existência de mal no mundo é indiscutível. E, como Deus é supostamente omnisciente, omnipresente, omnipotente e sumamente bom, Ele teria tudo para evitar a existência desses males. Isso é dito na música da seguinte forma: “Do que vale saberes tudo se continuamos inconscientes/Do que vale poderes tudo se nós sempre vemos sofrimento/Do que vale veres tudo se nunca te fazes presente”. No início da música há ainda uma introdução em que uma voz feminina diz que a sua mãe sempre fora uma boa mulher (ia à igreja, ajudava mesmo aqueles que necessitavam menos do que ela, etc.) e acabou por morrer na miséria. E essa mesma voz faz a pergunta: “Que mal fez a minha mãe a Deus?”. A crítica e a pergunta feita por esta voz feminina têm o mesmo fundamento que um texto de Voltaire sobre o terramoto de 1755, ou seja, questiona o facto de acontecerem coisas más a pessoas que seguem rigorosamente Deus. Segundo o argumento do mal, o ateu parece ter razão na sua opinião acerca da existência de Deus.
Voltando à música, Deus fundamenta a sua resposta ao ateu na tese do livre arbítrio, que defende que Deus deu aos Homens a liberdade para agirem por si próprios, evitando que os humanos sejam uns meros robôs. Por isso, se os seres humanos escolherem o mal em detrimento do bem Deus não deve ser responsabilizado por isso, mas sim os Homens. Valete aborda esta responsabilização dos Homens, colocando Deus a dizer: “Eu não posso interferir, apenas assisto e analiso/Só no julgamento final é que eu corrijo e decido”. Ou seja, evoca a existência de um “tribunal” em que Deus é o “juiz” e julga cada pessoa e decide se essa pessoa merece o inferno ou o paraíso.
Filosoficamente, continua a ser difícil dizer qual é a resposta ao título deste texto, pois sempre que surge um argumento convincente acerca da existência de Deus surge um contra argumento que nos faz questionar o argumento inicial. Pessoalmente, sou da opinião que este Deus não existe (embora acredite em algo para além de nós, humanos), porque mesmo que ele tivesse dado livre arbítrio aos Homens e que estes fossem responsáveis por muitos males, isso não justificaria a existência do mal natural. Se Deus fosse sumamente bom, ele evitaria esse mal; logo, não existe ou não é sumamente bom.

(A letra da música "Revelação", de Valete, pode ser consultada aqui