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| Johnny Depp no filme Sweeney Todd | 
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            E se um dia um
desconhecido lhe oferecer flores, dizendo:
            “Rachei-a de alto a baixo, como um animal, porque ela contava as moscas
no tecto enquanto fazíamos amor.” [2] 
            que irá pensar, cara
leitora, de tal impulso?
            
            E já agora: e porque não
uma situação como esta, em que
2
            A senhora Maria deixou a
sopa ao lume, fogão no mínimo não vá o feijão queimar-se, bate com firmeza na
janela da vizinha e fica à espera:    nada, como de costume, tem de bater outra vez  truz
truz  não é que seja má pessoa que
até nem é, mas já está dura de ouvido, a Ti Mariana, é por isso que demora,
demora, mas olha, parece que já lá vem, ligeira no andar como quem tem de
compensar, e a língua afiada que o bairro bem conhece  sempre
vais, hã? olha qu’essa camone não vale o trabalho!  mas a senhora Maria não pára, lá vai ela rua
acima, dizendo para si mesma que sim que vai, até que nem custa nada, vendo
bem, é ir num pé e vir noutro, porque apesar de não ser íntima, sempre se é
vizinha, e morrer-se assim como a alemã do 7º, 
toda queimada que ficou,
coitadinha da Ingrid!  valha a
verdade que era um tanto esquisita, diz-se que nem cozinhar sabia, mas isto as
estrangeiras é o que se sabe, bem arreadinhas, coisa e tal, sempre no laró mas
cozinha nada, e com isto tudo a senhora Maria está já quase a chegar, mas é bom
que se despache se não quer ficar sem sopa, e como ela quer a sopa resolve
despachar-se e vai daí acelera o passo, pés meio dentro  é
melhor tirar o avental  meio fora dos
chinelos pretos dos trezentos - e uff!
até que enfim, lá chega ela ao cemitério.
            Tudo estava a correr bem
(se é que se pode dizer isso de um funeral), o padre Ardósias, apesar de que ainda
era cedo, não havia dúvida que estava sóbrio, a família da Alemanha tinha vindo
e tudo, mas vestidas assim, senhora
Maria, vestidas assim! coscuvilhava a invejosa da Gertrudes, a choradeira
da ordem ainda não tinha começado, se bem que um funeral sem choro não é
funeral nem é nada! (e esta Gertrudes que não se cala...), a coisa estava
portanto a correr dentro dos conformes - e é então que o viúvo se passa
completamente dos carretos!
            Nunca tinha visto o menino Edmundo assim!  diria mais tarde a mãe Gija, ama de tudo
quanto é garoto lá no bairro, e que o criara desde pequeno. Começava então um nunca
mais acabar de pontapés e cabeçadas e socos e cuspidelas e arranhões e tudo, o
padre é que as pagou, o Edmundo às cavalitas dele só gritava  eu bem
a avisei, eu bem a avisei  e o padre
a tentar safar-se  a refeição é sagrada 
continuava o Edmundo  a refeição é sagra...  pumba!, um murro bem nos queixos  toma lá
a bênção, que é p’ra não me sujares a batina  e a poeirada era tal que já nem se via nada,
e o Edmundo  que bem que corre o maganão 
zás, num ápice e já estava empoleirado bem no cimo da figueira  vou-vos
contar porquê, ai isso é que conto 
mas lá se ia acalmando, até já falava mais baixo  mas eu
não saio cá de cima!  pois bem, que
ficasse  deixem lá ficar o gajo!  e o
Edmundo ficava e ameaçava  o primeiro filho da pu...  e a sirene da polícia a aproximar-se  que me
tente agarrar...  mas a coisa
compunha-se, todos mais calmos, fez-se o jeito ao Edmundo  se quer
contar que conte!  e o Edmundo que
sim que queria e vai daí conta mesmo, e fica-se então a saber que 
            “Com
a minha mulher, senhor, passava-se com os ovos estrelados o que se passa com as
crianças, nunca a deixavam em paz. A diferença é que as crianças crescem e
acabam por se desenvencilhar sozinhas, enquanto que os ovos estrelados... E que
se poderá comparar a dois ovos bem estrelados? Comemo-los como o maior dos dons
do céu. Passa-se o mesmo com tudo, é uma questão de precisão. Sou pedreiro, sei
do que estou a falar. O que é importante para os ovos é a quantidade e a
temperatura do óleo onde os deitamos - partidos e despejados com cuidado - e o
momento exacto em que temos de os tirar, no instante em que a clara está
inchada como a massa de um sonho. Os ovos estrelados não devem “colar”, como
ela dizia. Nunca mais o disse, graças a Deus. Um ovo estrelado em que já não se
vê a gema ou cuja clara ainda está transparente ou rasgada não é um ovo
estrelado nem é nada.
Mas
quem poderia prever que a queimadura seria tão grave?” [3] 
            A senhora Maria estava
estupefacta. Incredulidade no olhar, espanto e medo estampados no rosto, são as
pernas que a levam dali para fora,  com licença estou com pressa!  mas a verdade é que está mesmo embora se não
lembre porquê, tenta correr sem cair e quase o consegue,  porcaria
dos chinelos dos trezentos!  levanta-se
ligeira e é então que se lembra: a sopa!
esqueci-me da merda da sopa!  e
desata a correr por ali abaixo, um pé calçado e outro não, ainda bem que o
marido não estava, pensa ela,  logo o Serafim, que detesta violências  e é verdade que ele não estava, não
senhor, mas o que a senhora Maria não
sabe é que ele não poderia ter lá estado mesmo que quisesse, porque entretanto
3
            O senhor Serafim
aproveitou a folga da manhã para ir ao barbeiro. Não ao do costume, que
infelizmente está de férias, mas ao novo que abriu no centro da vila. Dirige-se
para a cadeira quando chega a sua vez  barba ou cabelo? repara que é novinha em
folha só barba, por favor enquanto se
senta confortavelmente. Depois de lhe espalhar a espuma pelo rosto e de afiar
as navalhas na tira de couro, o barbeiro inicia finalmente o seu trabalho.
            É só então que, em surdina
como nas confidências, começa a contar ao senhor Serafim a seguinte história:
            “Sou
barbeiro. É uma coisa que pode acontecer a qualquer pessoa. Quero dizer que até
esse dia fui um bom barbeiro. Cada qual tem as suas manias, eu não gosto de
borbulhas.
            Aconteceu
assim: comecei a barbeá-lo calmamente, ensaboei-o com habilidade, afiei a
navalha no braço da cadeira e suavizei-a na palma da mão. Sou um bom barbeiro!
Nunca cortei ninguém e ainda por cima esse tipo não tinha uma barba muito espessa.
Mas tinha borbulhas. Devo reconhecer que nas suas borbulhas não havia nada de
especial, no entanto, incomodavam-me, enervavam-me, revolviam-me as tripas.
            A
primeira, contornei-a bem, sem grande dificuldade, mas a segunda começou a
sangrar. Então, não sei o que me deu, acho que é uma coisa muito natural,
aprofundei a ferida e depois, sem poder deixar de o fazer, com um só golpe,
cortei-lhe a cabeça.” [4] 
            O senhor Serafim sente-se
um tanto atordoado. Poderia jurar que o seu rosto está branco como a cal, mas
prefere não o fazer. A verdade é que o senhor Serafim não gosta nada de
proferir afirmações que não possa provar. Em condições normais, levantar-se-ia
para verificar junto a um espelho até que ponto se justificaria a sua suspeita
quanto à coloração do rosto. Mas acontece que a presente situação tem muito
pouco de normal. Mesmo que quisesse, o senhor Serafim não conseguiria
levantar-se, pois tal não lho permitiriam as tremuras que parecem ter tomado
conta das suas pernas. E se, por hipótese absurda, o senhor Serafim se tivesse
podido levantar e dirigir junto a um espelho, o seu olhar estaria tão turvo e
nublado que não conseguiria constatar com a objectividade necessária a
coloração do seu rosto.
            Agora que pensa nisso, o
senhor Serafim dá-se conta de que deveria ter-se dirigido para casa,
imediatamente após ter saído do barbeiro. Realmente, se ficara tão perturbado,
porque viera para o café, que ainda por cima está tão cheio? Assim é mais
provável que reparem nele, como acontece com o senhor que está sentado na mesa
em frente, a olhar fixamente na sua direcção. Também não tem muito sentido ter
pedido café com leite e lhe ter deitado açúcar, ele que habitualmente toma
descafeinado com um único adoçante. Resta-me
mexer com insistência o meu café, para que o açúcar se dissolva bem, pensa
para consigo o senhor Serafim, e é isso mesmo que ele sente dever dizer ao
senhor que está sentado à sua frente, atendendo ao olhar estranho com que o
observa. Sem parar de mexer com a colher, e depois de informar o seu vizinho de
mesa de que o açúcar não se encontra ainda suficientemente derretido (sempre
com um sorriso nos lábios e a boa educação de que tanto se orgulha), o senhor
Serafim encontra-se finalmente com o espírito liberto para tentar entender os
mais recentes acontecimentos dessa tarde.
            Que atitudes tão estranhas podem as pessoas ter, pensa o senhor
Serafim. Porque lhe teria o barbeiro
contado aquilo da borbulha? Tê-lo-ia morto realmente? Como era possível alguém
tirar a vida a outra apenas porque não suporta borbulhas? Já não saberão as
pessoas  dominar os seus impulsos?
Estas e outras interrogações ocupam neste momento o cérebro do senhor Serafim,
enquanto a sua mão direita continua, voltas e mais voltas, remexendo com a
colher no café com leite, num gesto mecânico, próprio de quem se esqueceu do
que está a fazer.
            É então que o senhor
sentado à sua frente puxa de uma pistola e dispara no peito do senhor Serafim.
4
            É quase meia-noite. O juiz
Garcia revolve-se no leito sem conseguir dormir, apesar do adiantado da hora e
do cansaço do corpo. Acende de novo a luz, reacende o cachimbo e semicerra os
olhos, expressão muito usual no juiz Garcia quando resolve pensar em algo que o
preocupa deveras.
            Esta noite o juiz Garcia
não se sente nada feliz, poder-se-ia mesmo afirmar que se encontra um tanto
deprimido. O julgamento de hoje no tribunal fez surgir no seu espírito um
conjunto pouco homogéneo de pensamentos, constituído por recordações do tempo
em que iniciou a sua carreira, algumas preocupações de natureza ética e também
por vagas mas incómodas sensações de desalento. Como pessoa metódica que se
habituou a ser, o juiz Garcia vai analisar os seus pensamentos um a um,
começando por aqueles que lhe ocorreram em primeiro lugar, critério que utiliza
habitualmente em situações semelhantes.
            O julgamento de hoje, por
exemplo. Não restaram dúvidas quanto à justeza da sua decisão, o próprio
condenado o reconheceu. Não, não era disso que se tratava. O problema era o
réu, ou melhor, o seu desconcertante à vontade ao confessar o crime, os olhares
entediados que cruzava com os jurados, a expressão indiferente com que ouviu a
sentença. É nisto que pensa de momento o juiz Garcia, cachimbo na mão, enquanto
um leve odor a caramelo emana subtilmente do tabaco, aconchegando os pensamentos
num embalo doce, como que a chamar pelas mais queridas das recordações, aquela
por exemplo em que...
            Riohacha, algures na
América Latina. A pequena cidade onde começou a carreira, já lá vão mais de
trinta anos. Vem-lhe agora à memória o seu primeiro grande julgamento, o dos
gémeos Vicario e sua irmã abandonada no altar, mais a faca de matar porcos e a
honra lavada com sangue, e o ventre de toureiro do noivo arrependido,
esfaqueado uma e outra vez e mais outra ainda, tudo isto à luz do dia, bem no
centro da praça principal. Lembra-se também do pacto de silêncio que a cidade
celebrou, o que permitiu a absolvição dos réus, por absoluta falta de provas e
total ausência de testemunhas. Ah!, que bem que sabe ao juiz Garcia recordar
esses tempos, em que matar era como que a reparação de uma injustiça, realizada
com honra e sem prazer, lamentada pelos homens e compreendida por Deus...
            Enquanto saboreia um
último travo do cachimbo e se prepara para dormir, o juiz Garcia pega mais uma
vez na pasta acastanhada que contém as actas do julgamento desse dia e relê, a
páginas 327 do processo, a insólita confissão do réu:
            “Começou
a mexer o café com leite com a colherzinha. O líquido quase transbordava da
chávena empurrado pelo movimento do utensílio de alumínio (o recipiente era
vulgar, o sítio ordinário e a colher estava arredondada pelo uso). Ouvia-se o
barulho do metal contra o vidro. Tim, tim, tim, tim. E o café com leite girava,
girava com uma cova no meio. Um maelstrom. E eu encontrava-me sentado mesmo à frente.
O café estava à pinha. O homem continuava a mexer, a mexer, imóvel, e sorria ao
olhar-me. Senti uma coisa subir por mim acima. Fitei-o de tal maneira que se
viu na obrigação de se explicar:
            -
O açúcar ainda não está derretido.
            Para
mo provar, bateu com a colher várias vezes no fundo do copo. Recomeçou a mexer
metodicamente a beberagem, com uma energia redobrada. Voltas e mais voltas, sem
parar, eternamente. Voltas e mais voltas e mais voltas. E continuava a olhar
para mim, sorrindo. Então puxei da pistola e disparei.” [5] 
            Foi você que pediu uma
consciência moral? 
[1] In CAFÉ, Carlos, Entre o Prazer e o
Dever — Variações em torno da moral kantiana, Portimão, Livraria Teorema,
1999, pp. 13 a 16. Este texto, originalmente designado Abertura, foi encenado pelo grupo de Teatro A Gaveta com o título, que entretanto adoptei, de Barba ou cabelo?. 
 
[2] AUB, Max, Crimes Exemplares,
Lisboa, Edições Antígona, 1995, pág. 24