Joana Gonçalves, a jovem autora do artigo |
Até que ponto devemos dizer a verdade?
por
Joana Gonçalves
Para realizar este artigo filosófico, inspirei-me numa
passagem de um livro que li recentemente, “Memórias de Anne Frank”. Neste
livro, o autor, Theo Coster, judeu e ex-colega de Anne, reúne cinco ex-amigos
desta e recordam como eram as suas vidas durante a 2ª Guerra Mundial. Ao longo
do livro, o autor acaba por recordar também a sua própria história dando-nos o
testemunho em primeira mão de um sobrevivente ao Holocausto.
Numa passagem do livro, quando o autor faz referência ao
seu percurso de vida, ao longo de todos aqueles anos em que os judeus foram
perseguidos, conta-nos que não viveu um período atribulado tal como muitos dos
seus colegas. Theo foi identificado como uma pessoa “normal” graças a um mero
acaso que, segundo ele, lhe salvou a vida: algum tempo antes de se iniciar a
guerra, o seu pai tinha sido obrigado a preencher um formulário sobre a
ascendência dos seus avós. Este preencheu-o dizendo que Theo tinha dois avós
judeus e dois não-judeus quando, na realidade, ambos os lados da família eram
judeus. Quando um funcionário público recebeu esse formulário, identificou Theo
como uma criança não judaica nos seus documentos de identificação, passando
então a ser considerada uma criança “normal”.
O que mais me chamou à atenção na vida desta personagem é
que sobreviveu à custa de uma mentira. Talvez se tivesse sido reconhecido como
judeu, tal como Anne Frank fora, não tivesse tido a sorte de escapar impune a esta
época histórica. Mas, afinal, até onde devemos encarar a verdade? É errado mentir
em qualquer circunstância? A verdade é que na prática muitos de nós põem de
parte essa hipótese. A mentira é vista por muitos como algo indesejável e incorreto.
Mas será que realmente existe algum critério que separe as ações “moralmente
boas” das “moralmente más” e que classifique a mentira como um ato incorreto em
qualquer circunstância? Por exemplo, seria errado mentir a um criminoso que
procurava um amigo nosso, de modo a salvar-lhe a vida? Deveríamos mentir para
salvar a vida de alguém da nossa família?
Immanuel Kant afirma que nenhum indivíduo deve mentir em
circunstância alguma e que devemos agir de acordo com o Dever e não a pensar nas
consequências das nossas ações. Segundo Kant: “(…) o dever
de veracidade não
faz qualquer distinção entre pessoas –umas em relação às quais
poderíamos ter este dever, outras a propósito das quais dele nos poderíamos
dispensar– mas porque é um dever incondicionado, que vale em todas as
condições.” Assim, segundo este filósofo, o pai de Theo fez mal
em ter mentido para salvar a vida do filho. O seu dever era ter afirmado que
este tinha quatro avós judeus, independentemente de conseguir ou não sobreviver
à perseguição dos alemães, pois o mais importante era respeitar os deveres
universais.
Já John Stuart Mill, um filósofo inglês do século XIX,
defende uma perspectiva utilitarista, afirmando que devemos agir de modo a
maximizar a felicidade, isto é, proporcionar o máximo de bem-estar ao maior
número de pessoas possível. Segundo Mill, a atitude do pai de Theo foi correta pois
permitiu que este sobrevivesse, sendo que qualquer pessoa na mesma situação
deveria ter agido da mesma maneira.
Podemos ainda abordar a situação desta família segundo
outra perspectiva: o egoísmo ético. Esta teoria diz-nos que devemos agir apenas
em função do interesse de cada um e do próprio bem-estar. Ayn Rand, uma
escritora de origem russa, afirma que “alcançar a própria felicidade é o
objetivo moral mais elevado do ser humano”. Sendo assim, para um egoísta ético o
pai de Theo agiu moralmente bem ao mentir para salvar a vida do filho pois agiu
em função dos seus interesses.
Na minha opinião, a justificação do egoísmo ético face a
este problema filosófico é a mais plausível. O pai do autor, ao querer salvar a
sua família, sentiu-se na obrigação de mentir. É claro que muitos judeus acharam
que não era o mais acertado e aceitaram o seu estatuto social, mas esta foi a
forma de conseguir dar relevância aos seus interesses. Mas será que o que o pai
de Theo fez foi o mais correto? Não sei e duvido que alguém saiba responder a
esta questão com uma certeza absoluta. Uns considerarão que sim, outros que
não. Mas deixemos isso ao critério de cada um.
COSTER, Theo, Memórias de Anne Frank, Porto, Edições Asa, 2012
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