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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Os cafés filosóficos de Paris

Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e amigos no Café de Flore


OS CAFÉS FILOSÓFICOS DE PARIS

por

Carlos Café

(Dedicado à minha filha Maria Miguel)

Inúmeras coisas nos ocorrem quando pensamos em Paris. Muitas delas associadas à cultura, à música, às artes. É compreensível que assim seja. É em Paris que estão os museus do Louvre e d’Orsay. Em Paris viveram Picasso, Toulouse-Lautrec, Degas, Marcel Duchamp, Baudelaire, Rimbaud. O Hot Club foi o berço onde nasceu o jazz manouche de Django Reinardht. Paris acolheu a nouvelle vague de François Truffaut, Jean-Luc Godard e Alain Resnais. Também a filosofia tem grandes nomes associados a Paris. René Descartes, por exemplo, ali viveu alguns anos, desfrutando das tertúlias privadas, à margem do ambiente académico, que mantinha com figuras de proa da ciência e filosofia de então. Mas não são as marcas que a filosofia deixou em Paris que me interessam agora. Interessa-me falar das marcas que Paris deixou na filosofia.
Os professores e os alunos do Liceu, a escola filosófica que Aristóteles criou quando abandonou a Academia de Platão, tinham um hábito curioso: passeavam ao ar livre enquanto filosofavam. Chamavam-lhes “peripatéticos”, palavra grega que significa “os que ensinam caminhando”. Sócrates filosofava com os seus concidadãos de Atenas também ao ar livre, preferindo no entanto a cidade à natureza. Conta-se que, uma vez interpelado sobre a razão porque não usufruía da natureza, respondeu dizendo que lhe interessava principalmente o que pensam os homens e que esses, os homens, estão nas cidades. Sócrates era filho da pólis e um filósofo da ágora, a praça pública. Os romanos adotaram a ideia e criaram o fórum. O conceito sofreu várias alterações ao longo da história, num processo em que o academismo das universidades triunfou quase sempre sobre a informalidade da ágora. Até que em Paris se inventaram os “cafés filosóficos”.
O Café de Flore é um dos mais famosos. Frequentado por artistas e intelectuais, ficou fortemente associado à filosofia quando nele passaram a ter presença assídua alguns dos mais influentes filósofos parisienses da época. Um casal se destacou de entre os frequentadores habituais: Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Mantendo uma relação amorosa intensa e pouco convencional, foram provavelmente o núcleo mais mediático de um grupo que incluía, entre outros, o filósofo e escritor de origem argelina Albert Camus.
Retomando reflexões anteriores de filósofos como Friedrich Nietzsche, Sören Kierkegaard e Martin Heidegger, que tinham colocado a existência humana e a discussão em torno do seu valor e autenticidade no centro de debate filosófico, a filosofia parisiense da época dará ao tema da existência uma dimensão absolutamente fundamental. Nascia assim o existencialismo.
Apesar das particularidades de cada um dos pensadores (Simone de Beauvoir, por exemplo, destacar-se-á pela teorização do feminismo), os existencialistas partilhavam um grande número de teses, preocupações filosóficas e estratégias de divulgação e discussão das suas ideias.
A tese fundamental é a de que a existência é o mais importante dos assuntos filosóficos. O que fazer dela, como conduzir as nossas vidas, que opções são mais legítimas e autênticas ou que responsabilidades temos na relação com os outros e o curso do mundo – eis algumas das preocupações filosóficas comuns aos existencialistas. Camus chegou a afirmar que o verdadeiro problema filosófico é o suicídio, na medida em que a decisão de nos mantermos vivos pressupõe a resposta ao problema filosófico do sentido da vida. Outro traço particularmente evidente do existencialismo é o seu não academismo. Privilegiando as discussões informais em cafés e tertúlias mais ou menos espontâneas em detrimento da formalidade dos ensaios académicos, apresentam as suas ideias em novelas, romances, peças de teatro e entrevistas, envolvendo desse modo um público interessado mas pouco disponível para a tradicional filosofia das universidades.
Os lugares onde muitas dessas ideias nasciam e floresciam eram, muitas das vezes, os cafés de Paris. Hoje tudo é diferente. Uma boa parte desses cafés ou desapareceu ou são agora locais turísticos, elitistas e caros. Mas mantém-se viva a ideia do café filosófico como tertúlia informal e acessível a todos os que gostam de pensar os problemas filosóficos, resgatando desse modo o velho espírito da ágora ateniense. Resta-nos imaginar como seria o ambiente desses cafés…
Artistas, escritores, filósofos, músicos e muita, muita gente normal. Convivem entre si sem formalidades, com a familiaridade própria dos clientes habituais. Consomem croissants, café au lait, refeições tardias, vinhos tintos e Marie Brizard. Lêem, conversam, observam. Os odores a café e aos tabacos da cachimbo sobressaem de entre os demais. A discussão, apaixonada e apaixonante, surge com espontaneidade. Como o diálogo imaginário que se segue, entre a Maria Miguel, uma jovem aprendiz de filosofia, e o filósofo Jean-Paul Sartre:

Maria Miguel: Obrigado por ter acedido a participar neste diálogo “faz de conta”. Vou aproveitar para satisfazer a minha curiosidade e, ao mesmo tempo, esclarecer as dúvidas com que se deparam normalmente os jovens da minha idade quando, nas aulas de filosofia, se estudam as suas teorias. Posto isto, eis a primeira pergunta: o que têm de comum os existencialistas.
Sartre: O facto de admitirem que a existência precede a essência.
Maria Miguel: Que significa...
Sartre: Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. O homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo.
Maria Miguel: Cada um decide e é responsável por aquilo que é, pelas suas escolhas. Desamparado?
Sartre: Quando se fala em desamparo, queremos dizer somente que Deus não existe e que é preciso tirar disso as mais extremas consequências.
Maria Miguel: Como por exemplo...
Sartre: O existencialista pensa que é muito incomodativo que Deus não exista, porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível. Dostoiewsky escreveu: «Se Deus não existisse, tudo seria permitido». Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue.
Maria Miguel: Assim ficamos sem desculpas se as nossas escolhas não forem boas!
 Sartre: Exato. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre.
 Maria Miguel: “Condenado a ser livre”? Parece-me uma contradição! Como pode um condenado ser livre? Importa-se de me explicar?
Sartre: Condenado, porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque uma vez lançado ao mundo é responsável por tudo quanto fizer.

            C’ est fini. Au revoir.

Notas: Este texto foi escrito para celebrar o Dia Mundial da Filosofia na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes em 2011. Todos os professores escreveram e expuseram um texto subordinado ao tema: "lugares filosóficos". Escolhi Paris.
O pequeno diálogo é retirado de um texto de minha autoria intitulado “Entrevista Imaginária com Jean-Paul Sartre”, escrito em 1997, o ano de nascimento da minha filha. As “respostas” de Sartre são retiradas textualmente da sua obra O Existencialismo é um Humanismo, editado em Portugal pela Presença.
Este texto foi escrito enquanto ouvia a banda sonora do filme O Fabuloso Destino de Amélie.