Quando, há uns anos, comecei a utilizar o cinema nas minhas aulas de filosofia, este foi um dos trabalhos de alunos que me deram o sinal de que valia a pena continuar. Por isso retribuo agora com a publicação do artigo, entretanto enviado pela autora via facebook. Obrigado, Tatiana!
Tatiana Nora ex-aluna da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes |
Os filmes Matrix e Vanilla Sky
e
a hipótese cartesiana do Génio Maligno
por
Tatiana Nora
Neste trabalho
irei abordar o problema da realidade e o problema da liberdade associados à
hipótese cartesiana do génio maligno e
mostrar de que forma estes estão retratados nos filmes Matrix, dos Irmãos Wachowsky, e Vanilla
Sky, realizado por Cameron Crowe.
A hipótese do
génio maligno, também designada por “dúvida hiperbólica”, por ser uma hipótese
bastante exagerada, foi imaginada por René
Descartes, um filósofo do século XVII, e diz que pode existir um ser
semelhante a Deus, mas perverso e maldoso, que nos manipula, nos ilude e nos
engana em relação ao que acreditamos ser verdade, podendo tudo ser apenas uma
espécie de “realidade virtual”. Afirma Descartes:
“Vou supor, por consequência, não o Deus sumamente
bom, fonte da verdade, mas um certo génio maligno, ao mesmo tempo extremamente
poderoso e astuto, que pusesse toda a sua indústria em me enganar. Vou
acreditar que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons, e todas as
coisas exteriores não são mais que ilusões de sonhos com que ele arma ciladas à
minha credulidade.”
Esta hipótese foi
proposta por Descartes quando este começou a pôr tudo em causa, utilizado a sua
dúvida como método para chegar a uma verdade absoluta (o cogito) e provar que existe conhecimento, e assim conseguir refutar
a tese do cepticismo, que diz que não existem verdades absolutas e,
consequentemente, não há conhecimento.
No filme Vanilla Sky, a hipótese do génio maligno
não está retratada na perfeição, embora David,
o protagonista, viva alguns momentos de realidade virtual, que podem remeter
para esta hipótese. Resumido o filme em poucas palavras: David, um homem bonito
e bem sucedido, tem um acidente em que fica desfigurado e a partir daí a sua
vida desmorona-se. Desesperado, David procura uma solução e encontra na internet
uma empresa, chamada Extensão de Vida,
que promete fazê-lo viver uma vida perfeita, mas em realidade virtual, empresa com
a qual David acaba por assinar um contrato. É exactamente nesta parte que Vanilla Sky se diferencia da hipótese do
génio maligno. Em dois aspectos: o primeiro é que, ao assinar o contrato, David
está a escolher ser “enganado”, e a hipótese do génio maligno diz que pode existir
uma espécie de Deus mau que nos engana a todos, mas este não nos dá a escolher
se queremos ou não ser enganados; o segundo é que David, e as outras poucas
pessoas que assinaram o mesmo contrato com esta empresa, são as únicas a ser “enganadas”,
e segundo a hipótese de Descartes, todas as pessoas são enganadas pelo génio
maligno. Neste filme, a única coisa que nos remete para a hipótese do génio
maligno é o facto de que, embora David tenha assinado o contrato para viver
numa realidade virtual, enquanto está a vivê-la não sabe que o está a fazer. Em
relação ao problema da realidade, neste filme temos a hipótese de assistir a
dois tipos de realidades: a realidade “real” e a realidade virtual, e David só
consegue distingui-las no final do filme, quando descobre que tinha assinado o
contrato com a empresa Extensão de Vida.
Quanto ao problema da liberdade, neste filme vemos claramente que David é
livre, pois é ele próprio que escolhe viver na realidade virtual, e embora esteja
imóvel e preso à máquina, mesmo assim ele tem a hipótese de escolher voltar a
viver uma vida real.
No filme Matrix, a hipótese cartesiana do génio
maligno está tão bem retratada sob a forma das máquinas, que até podíamos
considerá-las como sendo o “génio maligno do século XXI”. Neste filme, com
excepção de um pequeno grupo de humanos livres que vivem no mundo real, aproximadamente
no ano de 2199, todos os outros humanos do mundo estão a viver numa realidade
virtual, que julgam ser o mundo real, através de um programa de computador, o Matrix, ao qual estão ligados através
das máquinas sem qualquer hipótese de escolha, tal como na hipótese de
Descartes do génio maligno. O pequeno grupo livre, cujo objectivo é ganhar a
guerra que está a haver entre os humanos e as máquinas, para poderem libertar o
resto da humanidade, é constituído por pessoas que sobreviveram às máquinas e
por outras que viviam na realidade virtual, mas que, por desconfiarem que a Matrix existia, foram “desligadas” das
máquinas e trazidas para o mundo real. Foi desta forma que Neo, o protagonista do filme, foi trazido para a realidade:
Neo:
“Neste momento estamos dentro de um programa de computador?”
Morpheus: “É assim tão difícil de acreditar?”
Em relação ao
problema da realidade, tal como no filme Vanilla
Sky, Matrix também conjuga a
realidade real com a realidade virtual, mas neste filme é possível aos
personagens que não estão ligados às máquinas perceberem se estão na realidade
real ou na realidade virtual, pois eles é que escolhem o momento em que querem
entrar na Matrix. Quanto ao problema
da liberdade, só uma pequena minoria da humanidade é livre, todos os outros
estão presos às máquinas sem poderem sair de lá.
Na minha opinião,
ambos os filmes retratam o problema da realidade de forma parecida, pois ambos
têm momentos de realidade “real” e de realidade “virtual”, embora em Matrix os personagens consigam
distinguir as realidades uma da outra e em Vanilla
Sky o personagem não consiga. Já o problema da liberdade é abordado de forma
diferente, sendo que a forma como é abordado em Matrix tem mais a ver com a hipótese do génio maligno de Descartes
do que no filme Vanilla Sky.
Já estou trabalhando com cinema e filosofia há um tempo. espero que possamos trocar experiências.
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