Caravaggio, Sacrifício de Isaque, 1603, óleo sobre tela |
Em tempos, o programa
de filosofia do secundário incluía a discussão do problema da origem da
consciência moral. Na sequência dessa discussão, acabava por surgir um outro
bem mais interessante, a saber, o problema do valor da moral.
Apesar de não serem
autores obrigatórios, eu gostava de confrontar os alunos com as teses
defendidas por vários filósofos: Kant, do lado da “moral tradicional” e Marx,
Freud e Nietzsche, do lado dos “adversários”.
A escolha destes três
“mestres da suspeita” tinha também como objetivo dar a conhecer aos jovens
adolescentes teorias que vieram a ter repercussões enormes não só na filosofia,
mas também na arte, na cultura e na política. Embora telegráficas e
caricaturais, as breves apresentações que na altura escrevi para os alunos e
que aqui reproduzo praticamente sem alterações, cumpriam a função de
“facilitador de descobertas” para os mais interessados.
Hoje, é possível um
estudante terminar o 12º ano com excelentes classificações sem ter uma ideia
minimamente consistente sobre o marxismo ou a psicanálise, por exemplo.
Espero que estes
pequenos textos que escrevi há vários anos lhes despertem a vontade de
descobrir estes e outros pensadores que marcaram tanto o século XX.
Qual é a origem da consciência moral?
Pode definir-se
consciência moral como uma espécie de “voz
da consciência” ou “juiz interior”,
cujo papel principal seria o de funcionar como uma “bússola”, capaz de nos ajudar a discernir o que é “certo” e o que
é “errado” em termos éticos. Assim entendida, a consciência moral parece ser
exclusiva do ser humano.
Um dos critérios
utilizados para classificar as diferentes teses sobre este assunto pode ser o
seguinte: ou a consciência moral já nasce com o ser humano ou é algo que se adquire
posteriormente. Chamam-se às primeiras teses
inatistas e às segundas teses não inatistas.
De seguida iremos aplicar este critério a alguns dos pensadores estudados nas
aulas.
KANT: a lei moral ensina-nos a sermos
dignos da felicidade
Kant é um dos mais
célebres defensores da tese inatista. Considera este filósofo que a dimensão
moral faz parte da natureza humana, sendo algo que já nasce connosco, ou seja,
é inata.
A consciência moral
é, para Kant, a consciência do dever, que se nos apresenta na forma de “lei moral”. Kant diz que, nas escolhas
morais, a vontade humana se encontra numa “encruzilhada”:
ou o prazer ou o dever.
É certo que a busca
do prazer também é natural. Não se trata, contudo, da nossa característica
principal. Mais importante que a tendência natural para a felicidade, existe no
ser humano o sentido racional da moralidade.
O instinto busca a
felicidade, a razão a dignidade. É ele próprio quem o afirma: "A moral, propriamente dita,
não é a doutrina
que nos ensina como sermos felizes, mas como devemos tornar-nos dignos da felicidade." Ambas as disposições são naturais no
Homem, ambas nascem connosco. Mas o sentido mais nobre da existência humana
consiste na vitória da razão sobre o instinto.
Ainda que o não siga,
todo o ser humano sabe o que é o dever. Mesmo o mais analfabeto dos homens tem
a capacidade de descobrir em si o que é certo ou errado. Por outro lado, o mais
sábio dos homens pode revelar-se um absoluto cretino. Por isso, não é a
sabedoria que faz de uma pessoa uma pessoa boa, mas a força de vontade para
seguirmos o que a consciência nos diz.
Como afirma Kant, a
consciência moral é uma espécie de ”bússola”,
com a qual qualquer pessoa “sabe
perfeitamente distinguir, em todos os casos que se apresentem, o que é bom e o
que é mau”. Portanto, “não é preciso
nem ciência nem filosofia para que ela saiba o que há a fazer para se ser
honrado e bom”.
Para finalizar este
primeiro post sobre o tema, aqui fica uma última sugestão: comparar as teses de
Kant com esta pintura de Henri Matisse e este poema de Fernando Pessoa...
Henri Matisse, Le bonheur de vivre, 1905, óleo sobre tela |
Liberdade
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
Fernando Pessoa
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