Na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes cultivamos algumas boas tradições. Escrever textos originais sobre um tema e divulgá-los aos alunos e à comunidade escolar é uma delas.
Este ano cada professor de Filosofia escreveu sobre um filme por si escolhido. O meu texto (que também estará disponível no blogue oficial do grupo) foi sobre este filme de que gosto muito.
O LADO SELVAGEM (Into The Wild)
Realização: Sean Penn
“Olá amigos!
Esta é a última comunicação que receberão de
mim. Vou agora partir para viver no meio da natureza. Cuidem-se, foi muito bom
conhecer-vos.”
Alex (Chris McCandless)
A filosofia nasce do espanto, escreveu um dia Aristóteles.
Elogiava deste modo a interrogação crítica, o olhar outro que põe em causa a
glorificação do olhar “normal”, do pensar o “mesmo”. Num sentido idêntico,
Platão celebrou o prisioneiro que se liberta da vida falsa da “caverna”, ou
seja, aquele que tem a ousadia de se interrogar e pôr em causa o que parece
evidente. Também Descartes dizia que viver sem filosofar era como “ter os olhos fechados sem nunca se esforçar
por os abrir”. A filosofia faz-nos pensar e há uma forma de pensar que só
existe na filosofia. E há filmes que nos fazem pensar como na filosofia. O Lado Selvagem é um desses filmes.
O Lado Selvagem é um filme que nasce de um livro. Diz Sean Penn, o realizador: “Vi
a capa do livro. Peguei nele e acabei por o ler todo nessa noite, por duas
vezes. Bem cedo, na manhã seguinte, levantei-me e comecei desde logo a tentar
obter os direitos do filme. E isso tornou-se numa espécie de namoro de dez
anos.” O livro em causa tinha sido escrito por Jon Krakauer, um jornalista
americano que dele afirmou ter sido “o
único trabalho escrito que me deu realmente prazer ao fazê-lo.” Quando,
finalmente, Sean Penn consegue os direitos para realizar o filme, telefona ao
seu amigo Eddie Vedder, vocalista dos Pearl Jam, e desafia-o a escrever a banda
sonora do filme. Ele aceita e compõe assim o seu primeiro álbum a solo, que
viria a receber um globo de ouro.
Chris McCandless
é o elo de ligação entre o livro, o filme e o álbum. Filho de um famoso
engenheiro aeroespacial, de classe média alta americana, Chris conclui o curso
na Universidade de Emory, em Atlanta, em Maio de 1990, com boas notas. No dia
da cerimónia de entrega dos diplomas, almoçando com os pais e a irmã,
informa-os de que pretende fazer uma das suas habituais viagens solitárias: “acho que vou desaparecer por algum tempo”,
são exactamente as suas palavras. Rejeita mais uma vez a oferta de um novo
carro (“O meu Datsun de 82 está em muito
bom estado, para que quero eu um carro novo?”), doa os cerca de 25 mil dólares
que tem na sua conta a uma associação dedicada à luta contra a pobreza e faz-se
de novo à estrada, iniciando uma autêntica odisseia rumo ao Alasca. Deixará
tudo para trás - família, amigos, até o nome. Passará a responder pelo nome de Alexander Supertramp.
Chris era um
apaixonado pela literatura. Segundo a irmã, gostava de utilizar citações dos
seus escritores preferidos nas mais variadas situações. Sabemos que ofereceu
livros a amigos que conheceu na sua aventura e, no filme, são utilizadas com frequência
passagens retiradas dos seus livros preferidos. Adorava em Lev Tolstoi, o
grande escritor russo, o despojamento e o elogio de um estilo de vida simples,
sem luxos nem gastos desnecessários e a forte ligação à natureza.
Identificava-se com Jack London, o célebre escritor americano, que abandonou a
escola e saiu de casa aos 14 anos, tendo sido um autêntico Supertramp (super vagabundo), viajando pelos EUA e pelo mundo.
Fascinado pela autenticidade selvagem do Alasca, Jack London critica duramente
a sociedade capitalista e a importância que as pessoas atribuem ao dinheiro,
defendendo um estilo de vida intenso, solidário, simples, autêntico e próximo
da natureza. Sobre ele escreverá Chris num pedaço de madeira: “Jack London é o Rei.” Outro dos
escritores preferidos de Chris era Henry David Thoreau. Thoreau foi um escritor
e pensador ecológico americano que, insatisfeito com a sua vida em sociedade,
tomou, aos 38 anos, a decisão de ir morar no meio da floresta, nas margens do
lago Walden, numa casa construída por si próprio. Apesar de inexperiente como
agricultor, tentou a auto-suficiência, plantando batatas e produzindo inclusive
o seu próprio pão. Segundo as suas próprias palavras, foi viver para a floresta
porque queria viver intensamente a vida, “em
vez de descobrir, à hora da morte, que não tinha vivido”. No filme, Chris
cita Thoreau ao afirmar: “Mais do que
amor, dinheiro, fama, dêem-me verdade”.
A maior parte das
informações sobre o que aconteceu a Chris McCandless foi retirada do seu diário
e de testemunhos dos amigos que fazia com naturalidade. Sabemos que utilizou o
seu Datsun (que abandonou mais tarde), andou à boleia, em comboios de carga, de
canoa, normalmente sem ter um rumo definido. Escreveu no seu diário: “É nas experiências, nas memórias, na enorme
alegria triunfante de viver até ao limite, que se encontra o verdadeiro
significado.” Uma das pessoas com quem se cruzou diria dele o seguinte: “Acho que se meteu em sarilhos porque
pensava de mais. Esforçava-se demasiado por entender o mundo, por compreender a
razão que levava as pessoas a serem tão más umas para as outras.” Não sei
se Chris “pensava de mais” ou não.
Mas o filme inspirado na sua vida dá decerto que pensar. Apresentarei de seguida
algumas interrogações filosóficas, na sua maior parte relacionadas com o
problema do sentido da vida, que o filme pode suscitar.
Chris McCandless
afirma no filme: «A essência do espírito
humano vem de experiências novas». Até que ponto a aventura é importante na
vida humana? Chris quis testar os
seus limites. Deve haver limites a esse desejo de pôr à prova os nossos
limites? Durante a maior parte do filme, Chris parece estar convencido de que a
obtenção da felicidade individual é incompatível com a vida em sociedade. Será
mesmo? Será que a família é indispensável à felicidade individual? Chris entra
em ruptura com os pais por não se identificar com os seus valores e estilo de
vida. Como avaliar a sua decisão de nunca mais contactar a família, nem sequer
a sua irmã? E ainda: será que a nossa vida é mais rica quando temos mais
coisas, dinheiro e conforto? Será que uma vida mais próxima da natureza é mais
autêntica do que uma vida mais urbana?
Para
terminar, escolhi um excerto da letra de
Long Nights, a minha música preferida
da banda sonora composta por Eddie Vedder. Faz-me sempre imaginar como seriam
as noites solitárias de Chris McCandless. Aquela, por exemplo, em que
(sabemo-lo pelo seu diário) “recebeu a
chegada do novo ano a observar a lua cheia que se elevava sobre o Gran
Desierto”:
Have no fear
For when I'm alone
I'll be better off
Than I was
before
I've got this life
I'll be around to grow
Who I was before
I cannot recall
I've got this life
And the will to show
I will always be
Better than before
(A música Long Nights, ilustrada com imagens do próprio Chris McCandless, pode ser ouvida aqui.)