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terça-feira, 10 de março de 2015

Descobertas do baú: a origem da moral segundo Karl Marx (explicada como se fosse a primeira vez)

Karl Marx

Karl Marx: a moral é uma mentira inventada pelos poderosos

            Marx (1818-1883) não gostava da filosofia tradicional. Escreveu-o com toda a clareza: “Tudo o que os filósofos fizeram foi interpretar o mundo de diferentes maneiras, mas o que importa é transformá-lo.” Por aqui se pode ver que as suas preocupações eram essencialmente práticas. Não lhe interessava o homem abstracto de que falavam os filósofos, mas as pessoas concretas que ele pretendia ajudar. Toda a teoria marxista se orienta neste sentido: libertar os oprimidos, criar um mundo mais humano. A intenção, como se vê, não é nova; os meios preconizados para a realizar são, no entanto, francamente originais. Vejamos porquê.

            Dizemos muitas vezes que todos os homens são iguais. Mas se olharmos para a realidade com um pouco de atenção, verificamos que tal não acontece. Qual é a origem das desigualdades? Marx não tem dúvidas: a propriedade privada. Tudo mudou quando o primeiro homem disse: isto é meu! Nesse dia nasceram as classes sociais. O critério para classificar os homens passou a ser o “ter”. Possuir propriedade privada, no início a terra, depois essencialmente a indústria, passou a ser para o homem o objetivo principal. A história da humanidade é o palco desta “luta de classes” e o resultado, afirmou Marx baseando-se no seu tempo, é a profunda desigualdade existente entre uma minoria de poderosos, a burguesia, e a esmagadora legião de oprimidos, os trabalhadores.

            O raciocínio de Marx é o seguinte: se a origem das desigualdades é a propriedade privada, “corta-se o mal pela raiz” abolindo a propriedade privada. Ora, como os que a detêm não a vão dar “de mão beijada”, a única solução é a maioria unir-se e tomá-la pela força, ou seja, fazendo uma Revolução. Esta violência, não sendo desejável, era para Marx inevitável. Os fins justificam os meios, pensava ele, porque o fim a atingir é uma sociedade mais justa, sem pobres nem ricos, sem propriedade privada nem classes, em que as terras, as fábricas e todos os meios de produção sejam pertença comum de todos os homens. Numa palavra, o Comunismo.

            Mas, se isso é realmente assim, por que motivos os trabalhadores não fazem nada para alterar a situação? — poder-se-ia perguntar. É aqui que entra a questão da moral. As pessoas não fazem nada porque julgam que isso é errado. Como foram educadas no sentido de respeitar as normas morais vigentes, pensam que elas existem precisamente para serem respeitadas. Marx diz que isso é uma mentira, mas uma mentira tão bem “contada”, que até parece que é verdade. A isso chama ele ideologia. Na sua opinião, a moral surgiu como tentativa de legitimar a propriedade privada e o poder dela decorrente. Quem a inventou? Aqueles a quem as proibições morais são favoráveis: a classe dominante. Por exemplo: a quem convém a regra “não roubarás!” ? Aos que nada possuem não é de certeza...

            A moral surgiu, assim, como uma “arma ideológica” ao serviço da classe dominante. E para que as classes dominadas não se apercebessem da sua verdadeira função, a moral foi sendo apresentada como algo imparcial, válida para todos os homens e sancionada por Deus. Marx, que era ateu, via na religião um aliado poderoso da moral: a esperança na vida eterna “adormeceria” os trabalhadores, levá-los-ia a aceitar passivamente os costumes e as normas,  de tal modo que já não se importariam com a sua deplorável situação real. É esse o sentido da frase “a religião é o ópio do povo”.

            Em resumo, segundo Karl Marx, a moral não nasce com o homem: ela é uma invenção, e uma invenção enganadora. A sua função é negativa: serve para convencer os desfavorecidos de que a desigualdade social é uma coisa natural. Uma vez desmascarada, o seu carácter de classe vem ao de cima. Na sociedade sem classes por que lutou, este tipo de moral subjugadora seria substituída por valores humanistas, em que o ser humano valesse por aquilo que é e não por aquilo que tem ou deixa de ter.
            Assim pensava Karl Marx. Como é sabido, não foi exatamente isso que foi feito em nome do “Marxismo”...

Diego Rivera e Frida Kahlo diante de um mural do artista

            A par da economia e, naturalmente, da política, a arte foi um dos domínios da criação humana que foi fortemente influenciado pelas ideias de Marx. Escolhi um exemplo retirado da música (e um exemplo português) para ilustrar o carácter engagé (comprometido politicamente) de um estilo de música que, por esse motivo, é conhecido como “música de intervenção”.
            Chamo especialmente a atenção para a letra:

A paz, o pão 

habitação 

saúde, educação 

Só há liberdade a sério quando houver 

Liberdade de mudar e decidir 

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

            Senhoras e senhores, Sérgio Godinho:



quinta-feira, 24 de abril de 2014

Igualdade: tratar de modo igual o que é diferente ou tratar de modo diferente o que não é igual?

(Pescado na net)


É necessário um conjunto de princípios que permitam op­tar por entre as diversas formas de ordenação social que determinam esta divisão dos benefícios, bem como obter um acordo sobre a repartição adequada dos mesmos. Es­tes princípios são os da justiça social: são eles que fornecem um critério para a atri­buição de direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a dis­tribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação social.


John Rawls, Uma Teoria da Justiça, Editorial Presença, 1993, pp. 27-28     

domingo, 24 de novembro de 2013

Uma leitura filosófica do filme Truman Show


O filme Truman Show e a filosofia (*)

Esteticamente considerado, Truman Show está naturalmente muito longe de ser uma obra prima. Mas poucos filmes terão a capacidade de suscitar uma tão grande diversidade de problemas filosóficos como o filme de Peter Weir. Refiro-me, naturalmente, a problemas filosóficos que fazem parte dos conteúdos da disciplina de filosofia no ensino secundário. Ademais, acresce a essa “filodiversidade” o carácter intuitivo, actual e “realista” da situação de que o filme parte: um reality show. Comecemos precisamente por aqui.
Cada vez mais as programações televisivas incluem programas deste tipo. E são cada vez mais as horas que lhes são concedidas, muitas vezes em horário nobre. As estatísticas sobre as audiências mostram-nos que cada vez há mais espectadores para estes programas. É aqui que os nossos alunos “entram”, vítimas de um voyeurismo social generalizado, um autêntico rolo compressor que tudo “normaliza” à sua passagem. E é aqui que a filosofia deve entrar em cena.
A filosofia nasce do espanto, da interrogação crítica, do olhar outro que põe em causa a glorificação do olhar “normal”, do pensar o “mesmo”. Platão celebrou o prisioneiro que se liberta da vida falsa da caverna; Descartes dizia que viver sem filosofar era como “ter os olhos fechados sem nunca se esforçar por os abrir”; nesse sentido, Truman é o herói filosófico que se liberta, o ex-prisioneiro da caverna, aquele que ousa abrir os olhos e tornar mais autêntica a sua vida.
Tenho vindo a defender que o cinema, com a sua  insuperável capacidade de suscitar no espectador a identificação com o “herói”, permite aos jovens colocarem-se na “pele” das personagens e reflectirem filosoficamente sobre os grandes problemas filosóficos. Paradoxalmente, é precisamente a identificação afectiva com o herói que facilita o distanciamento crítico em relação à realidade. Assim entendido, o cinema funciona como um laboratório virtual onde se produzem diferentes e estimulantes “experiências mentais” filosoficamente relevantes. Posto isto, regressemos à sala de cinema.
Como já referi, o filme Truman Show permite abordagens filosóficas invulgarmente diversificadas, no que às disciplinas filosóficas diz respeito. Vejamos quais.
Comecemos pela filosofia da acção e o problema filosófico do livre arbítrio. Toda a vida de Truman, decidida e supervisionada por Christof, obedece a uma apertada rede de condicionamentos sociais que tem como objectivos principais reduzir as suas escolhas a um leque o mais estreito possível de possibilidades e, assim, garantir o sucesso do programa televisivo. Ou seja, quanto mais Truman se parece com uma simples personagem, mais o argumentista/realizador, Christof, se parece com Deus. Ora, apesar de todos os condicionamentos sociais hábil e estrategicamente engendrados (fobia ao mar e à navegação, por exemplo), há algo em Truman que lhes resiste. Predisposição genética, como gostam de invocar os deterministas radicais? Ou será uma vontade livre que está para além da herança genética e dos condicionamentos sociais, como afirmam os defensores do livre arbítrio? Está lançado o debate.
Também a ética perpassa por todo o filme. Desde logo quando surge a questão: é moralmente errado enganar uma pessoa se, com isso, se proporcionar satisfação e bem-estar a milhões de outras pessoas? Funcionará neste caso o princípio da maximização da felicidade tão caro ao utilitarismo (proporcionar o máximo de bem estar ao maior número possível de pessoas)? Ou será que, como defende Kant, a dignidade da pessoa humana está para além de tais cálculos? Finalmente: ao decidir abandonar o programa, estará Truman a ser egoísta? Quem decide, afinal, o que é certo e errado? É tudo subjectivo? Ou será que o bem e o mal são relativos a cada sociedade? Ou...
E eis-nos já na inevitável paragem seguinte: a filosofia política. No filme refere-se que a adopção de Truman foi a primeira realizada por uma empresa, com toda a legalidade. Deveria tal coisa ser permitida? Deverá o Estado estabelecer limites à exposição pública da vida privada dos cidadãos? Se sim, quais? E que dizer dos contratos de trabalho celebrados entre a empresa e os actores que participam no programa? Fazer de esposa como se fosse a vida real?!
Chegados aqui, percorremos já cerca de 2/3 do programa de filosofia. Mas poderíamos ainda, no final do 10º ano, explorar como tema de opção o problema do sentido da vida e teríamos mais uma vez a odisseia de Truman no centro da discussão...
As férias de Verão já lá vão e estamos em Janeiro, a iniciar a unidade de teoria do conhecimento do 11º ano. Entre outras coisas, questionamos o valor e a solidez das nossas crenças acerca do mundo. Descobrimos, com Platão, o texto histórico da alegoria da caverna e a coragem de um prisioneiro que ousou libertar-se. Surpreendemo-nos com a bizarra hipótese do génio maligno inventada por Descartes, que serviu de inspiração aos irmãos Wachowski em Matrix: imagina que existe um ser poderosíssimo que se diverte a enganar-nos. Imagina, ainda, que esse ser perverso e mau tem o poder de criar em nós falsas impressões, de tal maneira que tudo à nossa volta não passa de uma ilusão, como se estivéssemos num daqueles sonhos em que tudo parece real, mas não é. Poderá a nossa vida ser apenas um sonho permanente de que ainda não despertámos?
Termino com um excerto da entrevista que Christof concede a uma estação de televisão. À pergunta do entrevistador “porque nunca descobriu Truman a verdade?”, Christof responde com toda a convicção:

“As pessoas aceitam a realidade do mundo em que vivem. É tão simples como isso.”

Será?

Deixo-vos com o trailer do filme



(*) Produzi este texto no âmbito de uma acção de formação intitulada Por dentro do filme II - Produção de Guiões de trabalho, a partir de filmes seleccionados, que decorreu em Portimão e teve como formadora Graça Lobo. Foi a melhor acção de formação que frequentei em toda a minha vida de professor. 

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Uma carta filosófica para os pais dos meus alunos


FILOSOFIA EM FAMÍLIA, é assim que lhe chamo. A ideia é esta: escrevo pequenas "cartas" filosoficamente provocatórias dirigidas aos pais dos meus alunos. Nelas estão apresentados de forma clara e intuitiva os problemas filosóficos que andamos a debater nas aulas. Espero com isto que o debate se prolongue lá em casa, até porque os pais devem saber o que os seus filhos andam a aprender na escola. É também um bom pretexto para pais e filhos conversarem entre si. A filosofia, que discute problemas que intrigam e nos fazem pensar, também pode servir para isso.
Deixo aqui a última "carta filosófica" que enviei aos pais dos meus alunos. O tema é a filosofia política. A quem pensa que a filosofia não tem nada a ver com a realidade do dia a dia deixo aqui um desafio especial: o que é que os impostos e a proibição de fumar têm a ver com a filosofia? 



SITUAÇÃO 1: O Estado deve redistribuir a riqueza?

O Cristiano Ronaldo tem rendimentos milionários, o Zé da Silva ganha cerca de 500 euros por mês num restaurante. O Zé da Silva paga o imposto mínimo, o Cristiano Ronaldo paga a taxa máxima para os mais ricos, que em Portugal é superior a 40% de tudo o que ganham. É justo?

A: SIM. O Estado tem o direito (e o dever) de redistribuir a riqueza, cobrando mais impostos aos mais ricos para poder dar apoio social aos mais pobres. Cada cidadão deve contribuir para o bem comum na proporção dos seus rendimentos. É com esse dinheiro que o Estado constrói escolas, hospitais, estradas, etc., e apoia os mais necessitados. Chama-se a isto justiça social.

B: NÃO. O Estado não tem o direito de se apropriar da riqueza que os cidadãos juntaram de maneira honesta e legal. A redistribuição da riqueza é ilegítima. Não está certo que aqueles que triunfaram na vida sejam obrigados a dar uma boa parte do seu dinheiro aos que não o conseguiram.


SITUAÇÃO 2: O Estado tem o direito de interferir nos hábitos dos cidadãos (Ex.:  proibição de fumar em quase todos os locais fechados)?

A: SIM. O Estado deve defender a saúde dos cidadãos, proibindo práticas em locais que ponham em causa a saúde pública. Neste caso, o direito (individual) de fumar é menos importante que o direito (colectivo) à saúde.

B: NÃO. O Estado não deve interferir em aspectos da vida privada das pessoas. Cada um é livre de escolher o que quer fazer da sua saúde. O Estado está a violar direitos dos cidadãos. 


SITUAÇÃO 3: Está certo favorecer aqueles que são discriminados na sociedade?

Numa sociedade em que as mulheres sejam discriminadas no acesso a alguns tipos de empregos (chefias de empresas, por exemplo), está certo adoptar uma lei que obrigue a favorecer as candidatas do sexo feminino como forma de compensar a discriminação de que são alvo?

A: SIM. Chama-se a isso «discriminação positiva» e significa que se favorecem intencionalmente pessoas pertencentes a grupos que sejam habitualmente discriminados pela negativa (as mulheres, neste exemplo). A discriminação positiva é uma medida temporária, até que a percentagem de mulheres nos diferentes empregos esteja de acordo com a percentagem de mulheres na sociedade.

B: NÃO. É uma forma injusta de tentar resolver o problema. Não está certo que um candidato a um emprego não seja escolhido, apesar de ser o mais qualificado, porque existe uma lei que dá preferência a quem ficou em 2º ou 3º lugar e é escolhida apenas porque pertence a um grupo socialmente discriminado. É injusto para quem merecia o emprego e foi rejeitado e pode até criar problemas a quem é admitida, porque pode ser acusada de ter o emprego não por ser melhor, mas por ser mulher.

Já pensou e escolheu as respostas certas? Quer saber com que teoria política se identifica mais? Aqui tem as "soluções"...

INTERPRETAÇÃO FILOSÓFICA DOS RESULTADOS:

Maior parte de respostas A: Em termos de filosofia política, as suas posições estão próximas do IGUALITARISMO. Para esta teoria filosófica, a existência de grandes desigualdades é um mal e o Estado deve evitar que elas existam. A IGUALDADE é o valor mais importante.

Maior parte de respostas B: As suas posições identificam-se mais com o LIBERALISMO, que defende que o Estado deve interferir o mínimo possível na vida dos cidadãos. Segundo esta teoria, depende de cada um tentar (ou não...) combater as desigualdades, não deve ser o Estado a tentar impor isso às pessoas. O valor mais importante é a LIBERDADE INDIVIDUAL.