quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Pensar filosoficamente Alberto Caeiro no Dia Mundial da Filosofia

Como já é tradição, o Dia Mundial da Filosofia celebrou-se na minha escola. Este ano, escolhemos o tema "Filosofia e Literatura" e os professores do grupo escreveram um texto de abordagem filosófica de um livro. Aqui fica para todos vós o meu contributo.





LIVRO: Poemas Completos de Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa


Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.

Alberto Caeiro

À primeira vista, fazer uma leitura filosófica da obra de Alberto Caeiro parece uma missão impossível. De facto, como se comenta filosoficamente a obra de um poeta que se classifica a si mesmo como “um temperamento sem filosofia”? Como tornar claras as ideias de alguém cuja “alma era de certezas poéticas, não buscando esclarecer-se”? Ou que afirma que a sua obra “não se pode comentar, porque se não pode pensar o que é directo, como o céu e a terra”?
Não obstante a aversão do poeta às conjecturas filosóficas, existe um pensamento ecológico em Alberto Caeiro. Uma das teses que perpassa toda a sua poesia é a da existência de uma nítida dicotomia entre o “mundo natural” e o “mundo humano”. Para ele, a natureza é um lugar caracterizado pela paz e comunhão com as coisas (Toda a paz da Natureza sem gente / Vem sentar-se a meu lado.). Quanto ao homem contemporâneo, não só já não pertence a esse mundo natural, como é, inclusive, um factor de perturbação da harmonia da natureza. Entre a “simplicidade” da natureza e a “confusão” do mundo dos homens, o poeta não hesita:

            Ah, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!

Pelas mesmas razões, Caeiro prefere a aldeia e o campo, rejeitando a “claustrofobia” que a cidade lhe provoca:

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o ceu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram tudo e também não podemos olhar
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

Se encarado a partir das teorias ecológicas contemporâneas, Caeiro revela-se um ecologista radical, já que defende a total preservação da natureza  (Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a natureza os pôs).  
Também encontramos na sua obra o igualitarismo biosférico, uma concepção absolutamente não hierarquizada da natureza segundo a qual cada ser é valorizado na sua riqueza insubstituível (Se sou mais que uma pedra e uma planta? Não sei. / Sou differente. Não sei o que é mais ou menos.). Para ele, cada ser existente na natureza vale por si mesmo, ou seja, tem um valor intrínseco e não meramente instrumental (A espantosa realidade das coisas / É a minha descoberta de todos os dias. / Cada coisa é o que é, / E é difficil explicar a alguem quanto isso me alegra, / E quanto isso me basta. / Basta existir para se ser completo.).
Podemos designar esta tese de anti-antropocêntrica, porque defende que a Natureza não existe para o Homem, uma vez que o Homem não vale mais que os seres da natureza. (Quando vier a primavera, / Se eu já estiver morto, / As flores florirão da mesma maneira / E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada. / A realidade não precisa de mim.). 
Alberto Caeiro faz a apologia do regresso à natureza. Trata-se de um regresso ao admirável mundo primitivo, em que o Homem tem de descobrir a aprendizagem do “desaprender”  (Procuro despir-me do que apprendi, / Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, / E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, / Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, / Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, / Mas um animal humano que a Natureza produziu.).
A “natureza” de que nos fala o poeta já quase não existe. Quanto ao seu “projeto”: será que resiste? Fica no ar a pergunta...
Para finalizar, deixo-vos com um dos poemas de Alberto Caeiro que mais aprecio:

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
            Se elle quizesse que eu accreditasse nelle,
            Sem duvida que viria fallar commigo
            E entraria pela minha porta dentro
            Dizendo-me, Aqui estou!

            Mas se Deus é as flores e as arvores
            E os montes e sol e o luar,
            Então acredito nelle,
            Então acredito nelle a toda a hora,
            E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
            E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.


Carlos Café

Nota: Todas as citações da obra de Alberto Caeiro aparecem em itálico num tamanho de letra ligeiramente inferior ao do texto.  Por razões de espaço, prescindimos de identificar os poemas citados. As citações respeitam a grafia original. A edição utilizada é: PESSOA, Fernando – Poemas Completos de Alberto Caeiro: Prefácio de Ricardo Reis, Posfácio de Álvaro de Campos. Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha; posfácio de Luís de Sousa Rebelo. 1ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 1994. 351 p. (Ler Pessoa).


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Joan Miró, Quino e Manoel de Barros

Joan Miró, O Carnaval do Arlequim, óleo sobre tela, 1924/25



Esta semana recebi em casa este livro que comprara online. Um dia depois, Manoel de Barros faleceu. O poeta brasileiro que dizia não ser da informática, mas da “invencionática”. Que pensava renovar o homem “usando borboletas”, um “apanhador de desperdícios” para quem a poesia “tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”.

Escolhi este poema de Manoel de Barros para vos desejar um bom fim de semana.

Brinquemos, então ;)

O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras

fatigadas de informar.

Dou mais respeito 
às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim um atraso de nascença.

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos

como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato

de canto.

Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.

(Poema retirado daqui).