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sexta-feira, 13 de junho de 2014

Poderá o ato de chicotear alguém ser moralmente certo? Um artigo de crítica filosófica da autoria de João Viana

João Viana, o autor


Poderá o ato de chicotear alguém ser moralmente certo?

por
João Viana

Para realizar este artigo, baseei-me no filme 12 Anos Escravo, que vi recentemente. Este filme relata a história de Solomon Northup, um homem negro livre que é enganado, sequestrado e vendido como escravo no estado de Louisiana, onde a escravatura existe com uma força tal que é vista como algo bastante natural. É, portanto, uma biografia “de um dos tempos mais negros da História do Homem”.

Este filme chamou-me à atenção, principalmente por causa de uma parte que se destaca. Numa das cenas, o “Mestre” (proprietário dos escravos) ordena a Platt – Solomon recebera este nome de forma a esconder a sua verdadeira identidade – que chicoteie Patsey (uma escrava) com toda a força, até se verem os ossos, ou, se não o fizesse, mataria todos os “pretos” que visse à sua frente. Platt, então, pega no chicote e dá-lhe as chicotadas. Aqui, o problema filosófico é evidente: será que Platt fez bem em chicotear Patsey? Ou deveria ter-se negado a chicoteá-la, condenando assim à morte muitos dos que com ele serviam aquele “Mestre”?

É comum, e racionalmente compreensível, pensar-se que o ato de chicotear alguém é moralmente errado. No entanto, também é normal pensar-se que provocar a morte a alguém é igualmente um ato moralmente incorreto.

Platt teve de escolher entre chicotear uma pessoa com toda a força e negar-se a chicoteá-la e, assim, provocar a morte a várias pessoas. Encontra-se aqui, portanto, um dilema, em que parece que nenhuma das opções é acertada. Contudo, é importante analisarmos este dilema filosoficamente, de modo a tirarmos conclusões acerca da escolha que se aproxima mais de uma ação moralmente correta.
Podemos analisar esta situação sob um ponto de vista deontológico e sob um ponto de vista utilitarista.

John Stuart Mill, defensor de uma ética utilitarista, afirma que devemos agir de forma a promover a felicidade geral, ou seja, de forma a maximizar o bem – e, neste caso, arrisco-me a dizer que se adequa mais o termo “minimizar o mal”, por razões que me parecem óbvias. A ideia principal de Stuart Mill é que a ação moralmente certa é a que tem consequências mais valiosas, pelo que é importante ponderar os prejuízos e os benefícios que a sua realização traz a todos os indivíduos. No caso do dilema de Platt, segundo a perspetiva utilitarista de Stuart Mill, a escolha moralmente certa seria chicotear Patsey, pois a morte de várias pessoas seria uma consequência pior que o sofrimento de uma pessoa, ou mesmo que a morte desta, e, portanto, Platt agiu bem.

Já Immanuel Kant, defensor da ética deontológica, afirma que devemos agir por dever, existindo leis morais universais que devem ser cumpridas independentemente das consequências. Este filósofo confere uma grande importância às intenções por detrás das ações. Segundo Kant, “uma vontade é boa não por causa dos seus efeitos ou do que consegue alcançar, nem por ser apropriada para alcançar um dado fim; é boa unicamente através da sua vontade, isto é, é boa em si”. Assim, segundo a perspetiva deontológica de Kant, as ações moralmente certas são aquelas em que há uma intenção ou vontade boa – em relação à ação em si e nunca em relação aos efeitos da mesma ação, isto é, ao fim pretendido com a realização de tal ação – e que são motivadas pelo sentido do dever. Qualquer forma de tortura, pelo sofrimento que provoca, é encarada por Kant como uma ação contrária ao dever, na qual a intenção não pode ser boa, sendo, portanto, uma ação moralmente errada (independentemente das circunstâncias em que é realizada). Assim, podemos concluir que, segundo esta perspetiva, Platt agiu mal ao chicotear Patsey, pois agiu contrariamente ao dever.

Depois de analisado o problema filosófico em questão sob dois pontos de vista tão distintos, resta-nos tirar as nossas conclusões acerca da escolha que Platt deveria ter tomado. Mas estas conclusões são obviamente subjetivas, pelo que cada um terá a sua própria opinião sobre este assunto.

Pessoalmente, sou da opinião de que Platt agiu corretamente, apesar de considerar o ato de chicotear alguém em si mesmo desprezível e de uma grande falta de senso moral. No entanto, analisando bem o problema em questão, parece-me que o facto de se salvarem várias vidas justifica essa tortura aplicada somente a uma pessoa. É, de facto, de admitir seriamente que nenhuma das duas opções consideradas aparenta ser moralmente correta, mas, tentando hierarquizar essas duas opções, olhando às consequências das ações, parece-me óbvio que a tortura aplicada somente a uma pessoa, mesmo que resulte em morte, se sobrepõe, por não apresentar consequências tão más como a morte de múltiplas pessoas. Por este motivo, considero que a escolha que Platt fez corresponde à ação que se aproxima mais de uma ação moralmente certa.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

"Até que ponto devemos dizer a verdade?", um artigo de crítica filosófica da autoria de Joana Gonçalves

Joana Gonçalves, a jovem autora do artigo

Até que ponto devemos dizer a verdade?

por

Joana Gonçalves

Para realizar este artigo filosófico, inspirei-me numa passagem de um livro que li recentemente, “Memórias de Anne Frank”. Neste livro, o autor, Theo Coster, judeu e ex-colega de Anne, reúne cinco ex-amigos desta e recordam como eram as suas vidas durante a 2ª Guerra Mundial. Ao longo do livro, o autor acaba por recordar também a sua própria história dando-nos o testemunho em primeira mão de um sobrevivente ao Holocausto.

Numa passagem do livro, quando o autor faz referência ao seu percurso de vida, ao longo de todos aqueles anos em que os judeus foram perseguidos, conta-nos que não viveu um período atribulado tal como muitos dos seus colegas. Theo foi identificado como uma pessoa “normal” graças a um mero acaso que, segundo ele, lhe salvou a vida: algum tempo antes de se iniciar a guerra, o seu pai tinha sido obrigado a preencher um formulário sobre a ascendência dos seus avós. Este preencheu-o dizendo que Theo tinha dois avós judeus e dois não-judeus quando, na realidade, ambos os lados da família eram judeus. Quando um funcionário público recebeu esse formulário, identificou Theo como uma criança não judaica nos seus documentos de identificação, passando então a ser considerada uma criança “normal”.

O que mais me chamou à atenção na vida desta personagem é que sobreviveu à custa de uma mentira. Talvez se tivesse sido reconhecido como judeu, tal como Anne Frank fora, não tivesse tido a sorte de escapar impune a esta época histórica. Mas, afinal, até onde devemos encarar a verdade? É errado mentir em qualquer circunstância? A verdade é que na prática muitos de nós põem de parte essa hipótese. A mentira é vista por muitos como algo indesejável e incorreto. Mas será que realmente existe algum critério que separe as ações “moralmente boas” das “moralmente más” e que classifique a mentira como um ato incorreto em qualquer circunstância? Por exemplo, seria errado mentir a um criminoso que procurava um amigo nosso, de modo a salvar-lhe a vida? Deveríamos mentir para salvar a vida de alguém da nossa família?

Immanuel Kant afirma que nenhum indivíduo deve mentir em circunstância alguma e que devemos agir de acordo com o Dever e não a pensar nas consequências das nossas ações. Segundo Kant: “(…) o dever de veracidade não faz qualquer distinção entre pessoas –umas em relação às quais poderíamos ter este dever, outras a propósito das quais dele nos poderíamos dispensar– mas porque é um dever incondicionado, que vale em todas as condições.” Assim, segundo este filósofo, o pai de Theo fez mal em ter mentido para salvar a vida do filho. O seu dever era ter afirmado que este tinha quatro avós judeus, independentemente de conseguir ou não sobreviver à perseguição dos alemães, pois o mais importante era respeitar os deveres universais.

Já John Stuart Mill, um filósofo inglês do século XIX, defende uma perspectiva utilitarista, afirmando que devemos agir de modo a maximizar a felicidade, isto é, proporcionar o máximo de bem-estar ao maior número de pessoas possível. Segundo Mill, a atitude do pai de Theo foi correta pois permitiu que este sobrevivesse, sendo que qualquer pessoa na mesma situação deveria ter agido da mesma maneira.

Podemos ainda abordar a situação desta família segundo outra perspectiva: o egoísmo ético. Esta teoria diz-nos que devemos agir apenas em função do interesse de cada um e do próprio bem-estar. Ayn Rand, uma escritora de origem russa, afirma que “alcançar a própria felicidade é o objetivo moral mais elevado do ser humano”. Sendo assim, para um egoísta ético o pai de Theo agiu moralmente bem ao mentir para salvar a vida do filho pois agiu em função dos seus interesses.

Na minha opinião, a justificação do egoísmo ético face a este problema filosófico é a mais plausível. O pai do autor, ao querer salvar a sua família, sentiu-se na obrigação de mentir. É claro que muitos judeus acharam que não era o mais acertado e aceitaram o seu estatuto social, mas esta foi a forma de conseguir dar relevância aos seus interesses. Mas será que o que o pai de Theo fez foi o mais correto? Não sei e duvido que alguém saiba responder a esta questão com uma certeza absoluta. Uns considerarão que sim, outros que não. Mas deixemos isso ao critério de cada um.



COSTER, Theo, Memórias de Anne Frank, Porto, Edições Asa, 2012

sábado, 15 de dezembro de 2012

Os filmes Matrix e Vanilla Sky e a hipótese cartesiana do Génio Maligno, por Tatiana Nora

Quando, há uns anos, comecei a utilizar o cinema nas minhas aulas de filosofia, este foi um dos trabalhos de alunos que me deram o sinal de que valia a pena continuar. Por isso retribuo agora com a publicação do artigo, entretanto enviado pela autora via facebook. Obrigado, Tatiana!


Tatiana Nora
ex-aluna da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes



Os filmes Matrix e Vanilla Sky
e
a hipótese cartesiana do Génio Maligno

por

Tatiana Nora

Neste trabalho irei abordar o problema da realidade e o problema da liberdade associados à hipótese cartesiana do génio maligno e mostrar de que forma estes estão retratados nos filmes Matrix, dos Irmãos Wachowsky, e Vanilla Sky, realizado por Cameron Crowe.
A hipótese do génio maligno, também designada por “dúvida hiperbólica”, por ser uma hipótese bastante exagerada, foi imaginada por René Descartes, um filósofo do século XVII, e diz que pode existir um ser semelhante a Deus, mas perverso e maldoso, que nos manipula, nos ilude e nos engana em relação ao que acreditamos ser verdade, podendo tudo ser apenas uma espécie de “realidade virtual”. Afirma Descartes:

“Vou supor, por consequência, não o Deus sumamente bom, fonte da verdade, mas um certo génio maligno, ao mesmo tempo extremamente poderoso e astuto, que pusesse toda a sua indústria em me enganar. Vou acreditar que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons, e todas as coisas exteriores não são mais que ilusões de sonhos com que ele arma ciladas à minha credulidade.”

Esta hipótese foi proposta por Descartes quando este começou a pôr tudo em causa, utilizado a sua dúvida como método para chegar a uma verdade absoluta (o cogito) e provar que existe conhecimento, e assim conseguir refutar a tese do cepticismo, que diz que não existem verdades absolutas e, consequentemente, não há conhecimento.
No filme Vanilla Sky, a hipótese do génio maligno não está retratada na perfeição, embora David, o protagonista, viva alguns momentos de realidade virtual, que podem remeter para esta hipótese. Resumido o filme em poucas palavras: David, um homem bonito e bem sucedido, tem um acidente em que fica desfigurado e a partir daí a sua vida desmorona-se. Desesperado, David procura uma solução e encontra na internet uma empresa, chamada Extensão de Vida, que promete fazê-lo viver uma vida perfeita, mas em realidade virtual, empresa com a qual David acaba por assinar um contrato. É exactamente nesta parte que Vanilla Sky se diferencia da hipótese do génio maligno. Em dois aspectos: o primeiro é que, ao assinar o contrato, David está a escolher ser “enganado”, e a hipótese do génio maligno diz que pode existir uma espécie de Deus mau que nos engana a todos, mas este não nos dá a escolher se queremos ou não ser enganados; o segundo é que David, e as outras poucas pessoas que assinaram o mesmo contrato com esta empresa, são as únicas a ser “enganadas”, e segundo a hipótese de Descartes, todas as pessoas são enganadas pelo génio maligno. Neste filme, a única coisa que nos remete para a hipótese do génio maligno é o facto de que, embora David tenha assinado o contrato para viver numa realidade virtual, enquanto está a vivê-la não sabe que o está a fazer. Em relação ao problema da realidade, neste filme temos a hipótese de assistir a dois tipos de realidades: a realidade “real” e a realidade virtual, e David só consegue distingui-las no final do filme, quando descobre que tinha assinado o contrato com a empresa Extensão de Vida. Quanto ao problema da liberdade, neste filme vemos claramente que David é livre, pois é ele próprio que escolhe viver na realidade virtual, e embora esteja imóvel e preso à máquina, mesmo assim ele tem a hipótese de escolher voltar a viver uma vida real.
No filme Matrix, a hipótese cartesiana do génio maligno está tão bem retratada sob a forma das máquinas, que até podíamos considerá-las como sendo o “génio maligno do século XXI”. Neste filme, com excepção de um pequeno grupo de humanos livres que vivem no mundo real, aproximadamente no ano de 2199, todos os outros humanos do mundo estão a viver numa realidade virtual, que julgam ser o mundo real, através de um programa de computador, o Matrix, ao qual estão ligados através das máquinas sem qualquer hipótese de escolha, tal como na hipótese de Descartes do génio maligno. O pequeno grupo livre, cujo objectivo é ganhar a guerra que está a haver entre os humanos e as máquinas, para poderem libertar o resto da humanidade, é constituído por pessoas que sobreviveram às máquinas e por outras que viviam na realidade virtual, mas que, por desconfiarem que a Matrix existia, foram “desligadas” das máquinas e trazidas para o mundo real. Foi desta forma que Neo, o protagonista do filme, foi trazido para a realidade:

Neo: “Neste momento estamos dentro de um programa de computador?”
Morpheus: “É assim tão difícil de acreditar?”

Em relação ao problema da realidade, tal como no filme Vanilla Sky, Matrix também conjuga a realidade real com a realidade virtual, mas neste filme é possível aos personagens que não estão ligados às máquinas perceberem se estão na realidade real ou na realidade virtual, pois eles é que escolhem o momento em que querem entrar na Matrix. Quanto ao problema da liberdade, só uma pequena minoria da humanidade é livre, todos os outros estão presos às máquinas sem poderem sair de lá.
Na minha opinião, ambos os filmes retratam o problema da realidade de forma parecida, pois ambos têm momentos de realidade “real” e de realidade “virtual”, embora em Matrix os personagens consigam distinguir as realidades uma da outra e em Vanilla Sky o personagem não consiga. Já o problema da liberdade é abordado de forma diferente, sendo que a forma como é abordado em Matrix tem mais a ver com a hipótese do génio maligno de Descartes do que no filme Vanilla Sky.