João Viana, o autor |
Poderá
o ato de chicotear alguém ser moralmente certo?
por
João
Viana
Para realizar este artigo, baseei-me no
filme 12 Anos Escravo, que vi
recentemente. Este filme relata a história de Solomon Northup, um homem negro livre
que é enganado, sequestrado e vendido como escravo no estado de Louisiana, onde
a escravatura existe com uma força tal que é vista como algo bastante natural. É,
portanto, uma biografia “de um dos tempos mais negros da História do Homem”.
Este filme chamou-me à atenção,
principalmente por causa de uma parte que se destaca. Numa das cenas, o “Mestre”
(proprietário dos escravos) ordena a Platt – Solomon recebera este nome de
forma a esconder a sua verdadeira identidade – que chicoteie Patsey (uma
escrava) com toda a força, até se verem os ossos, ou, se não o fizesse, mataria
todos os “pretos” que visse à sua frente. Platt, então, pega no chicote e
dá-lhe as chicotadas. Aqui, o problema filosófico é evidente: será que Platt
fez bem em chicotear Patsey? Ou deveria ter-se negado a chicoteá-la, condenando
assim à morte muitos dos que com ele serviam aquele “Mestre”?
É comum, e racionalmente compreensível,
pensar-se que o ato de chicotear alguém é moralmente errado. No entanto, também
é normal pensar-se que provocar a morte a alguém é igualmente um ato moralmente
incorreto.
Platt teve de escolher entre chicotear
uma pessoa com toda a força e negar-se a chicoteá-la e, assim, provocar a morte
a várias pessoas. Encontra-se aqui, portanto, um dilema, em que parece que
nenhuma das opções é acertada. Contudo, é importante analisarmos este dilema
filosoficamente, de modo a tirarmos conclusões acerca da escolha que se
aproxima mais de uma ação moralmente correta.
Podemos analisar esta situação sob um
ponto de vista deontológico e sob um ponto de vista utilitarista.
John Stuart Mill, defensor de uma ética
utilitarista, afirma que devemos agir de forma a promover a felicidade geral,
ou seja, de forma a maximizar o bem – e, neste caso, arrisco-me a dizer que se
adequa mais o termo “minimizar o mal”, por razões que me parecem óbvias. A
ideia principal de Stuart Mill é que a ação moralmente certa é a que tem
consequências mais valiosas, pelo que é importante ponderar os prejuízos e os
benefícios que a sua realização traz a todos os indivíduos. No caso do dilema
de Platt, segundo a perspetiva utilitarista de Stuart Mill, a escolha
moralmente certa seria chicotear Patsey, pois a morte de várias pessoas seria
uma consequência pior que o sofrimento de uma pessoa, ou mesmo que a morte
desta, e, portanto, Platt agiu bem.
Já Immanuel Kant, defensor da ética
deontológica, afirma que devemos agir por dever, existindo leis morais universais
que devem ser cumpridas independentemente das consequências. Este filósofo
confere uma grande importância às intenções por detrás das ações. Segundo Kant,
“uma vontade é boa não por causa dos seus efeitos ou do que consegue alcançar,
nem por ser apropriada para alcançar um dado fim; é boa unicamente através da
sua vontade, isto é, é boa em si”. Assim, segundo a perspetiva deontológica de
Kant, as ações moralmente certas são aquelas em que há uma intenção ou vontade
boa – em relação à ação em si e nunca em relação aos efeitos da mesma ação,
isto é, ao fim pretendido com a realização de tal ação – e que são motivadas
pelo sentido do dever. Qualquer forma de tortura, pelo sofrimento que provoca,
é encarada por Kant como uma ação contrária ao dever, na qual a intenção não
pode ser boa, sendo, portanto, uma ação moralmente errada (independentemente
das circunstâncias em que é realizada). Assim, podemos concluir que, segundo
esta perspetiva, Platt agiu mal ao chicotear Patsey, pois agiu contrariamente
ao dever.
Depois de analisado o problema
filosófico em questão sob dois pontos de vista tão distintos, resta-nos tirar
as nossas conclusões acerca da escolha que Platt deveria ter tomado. Mas estas conclusões
são obviamente subjetivas, pelo que cada um terá a sua própria opinião sobre
este assunto.
Pessoalmente, sou da opinião de que
Platt agiu corretamente, apesar de considerar o ato de chicotear alguém em si
mesmo desprezível e de uma grande falta de senso moral. No entanto, analisando
bem o problema em questão, parece-me que o facto de se salvarem várias vidas
justifica essa tortura aplicada somente a uma pessoa. É, de facto, de admitir
seriamente que nenhuma das duas opções consideradas aparenta ser moralmente
correta, mas, tentando hierarquizar essas duas opções, olhando às consequências
das ações, parece-me óbvio que a tortura aplicada somente a uma pessoa, mesmo
que resulte em morte, se sobrepõe, por não apresentar consequências tão más
como a morte de múltiplas pessoas. Por este motivo, considero que a escolha que
Platt fez corresponde à ação que se aproxima mais de uma ação moralmente certa.
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