O filme Truman
Show e a filosofia (*)
Esteticamente considerado, Truman Show está
naturalmente muito longe de ser uma obra prima. Mas poucos filmes terão a
capacidade de suscitar uma tão grande diversidade de problemas filosóficos como
o filme de Peter Weir. Refiro-me, naturalmente, a problemas filosóficos que
fazem parte dos conteúdos da disciplina de filosofia no ensino secundário.
Ademais, acresce a essa “filodiversidade” o carácter intuitivo, actual e
“realista” da situação de que o filme parte: um reality show. Comecemos precisamente por aqui.
Cada vez mais as programações televisivas incluem
programas deste tipo. E são cada vez mais as horas que lhes são concedidas,
muitas vezes em horário nobre. As estatísticas sobre as audiências mostram-nos
que cada vez há mais espectadores para estes programas. É aqui que os nossos
alunos “entram”, vítimas de um voyeurismo social generalizado, um autêntico
rolo compressor que tudo “normaliza” à sua passagem. E é aqui que a filosofia
deve entrar em cena.
A filosofia nasce do espanto, da interrogação
crítica, do olhar outro que põe em causa a glorificação do olhar “normal”, do
pensar o “mesmo”. Platão celebrou o prisioneiro que se liberta da vida falsa da
caverna; Descartes dizia que viver sem filosofar era como “ter os olhos
fechados sem nunca se esforçar por os abrir”; nesse sentido, Truman é o herói
filosófico que se liberta, o ex-prisioneiro da caverna, aquele que ousa abrir
os olhos e tornar mais autêntica a sua vida.
Tenho vindo a defender que o cinema, com a
sua insuperável capacidade de suscitar
no espectador a identificação com o “herói”, permite aos jovens colocarem-se na
“pele” das personagens e reflectirem filosoficamente sobre os grandes problemas
filosóficos. Paradoxalmente, é precisamente a identificação afectiva com o
herói que facilita o distanciamento crítico em relação à realidade. Assim
entendido, o cinema funciona como um laboratório virtual onde se produzem
diferentes e estimulantes “experiências mentais” filosoficamente relevantes.
Posto isto, regressemos à sala de cinema.
Como já referi, o filme Truman Show permite
abordagens filosóficas invulgarmente diversificadas, no que às disciplinas
filosóficas diz respeito. Vejamos quais.
Comecemos pela filosofia da acção e o problema
filosófico do livre arbítrio. Toda a vida de Truman, decidida e supervisionada
por Christof, obedece a uma apertada rede de condicionamentos sociais que tem
como objectivos principais reduzir as suas escolhas a um leque o mais estreito
possível de possibilidades e, assim, garantir o sucesso do programa televisivo.
Ou seja, quanto mais Truman se parece com uma simples personagem, mais o
argumentista/realizador, Christof, se parece com Deus. Ora, apesar de todos os
condicionamentos sociais hábil e estrategicamente engendrados (fobia ao mar e à
navegação, por exemplo), há algo em Truman que lhes resiste. Predisposição
genética, como gostam de invocar os deterministas radicais? Ou será uma vontade
livre que está para além da herança genética e dos condicionamentos sociais,
como afirmam os defensores do livre arbítrio? Está lançado o debate.
Também a ética perpassa por todo o filme. Desde
logo quando surge a questão: é moralmente errado enganar uma pessoa se, com isso, se proporcionar satisfação e bem-estar a milhões de outras pessoas? Funcionará
neste caso o princípio da maximização da felicidade tão caro ao utilitarismo
(proporcionar o máximo de bem estar ao maior número possível de pessoas)? Ou
será que, como defende Kant, a dignidade da pessoa humana está para além de
tais cálculos? Finalmente: ao decidir abandonar o programa, estará Truman a ser
egoísta? Quem decide, afinal, o que é certo e errado? É tudo subjectivo? Ou será
que o bem e o mal são relativos a cada sociedade? Ou...
E eis-nos já na inevitável paragem seguinte: a
filosofia política. No filme refere-se que a adopção de Truman foi a primeira
realizada por uma empresa, com toda a legalidade. Deveria tal coisa ser permitida?
Deverá o Estado estabelecer limites à exposição pública da vida privada dos
cidadãos? Se sim, quais? E que dizer dos contratos de trabalho celebrados entre
a empresa e os actores que participam no programa? Fazer de esposa como se
fosse a vida real?!
Chegados aqui, percorremos já cerca de 2/3 do
programa de filosofia. Mas poderíamos ainda, no final do 10º ano, explorar como
tema de opção o problema do sentido da vida e teríamos mais uma vez a odisseia
de Truman no centro da discussão...
As férias de Verão já lá vão e estamos em Janeiro,
a iniciar a unidade de teoria do conhecimento do 11º ano. Entre outras coisas,
questionamos o valor e a solidez das nossas crenças acerca do mundo.
Descobrimos, com Platão, o texto histórico da alegoria da caverna e a coragem
de um prisioneiro que ousou libertar-se. Surpreendemo-nos com a bizarra
hipótese do génio maligno inventada por Descartes, que serviu de inspiração aos
irmãos Wachowski em Matrix: imagina
que existe um ser poderosíssimo que se diverte a enganar-nos. Imagina, ainda,
que esse ser perverso e mau tem o poder de criar em nós falsas impressões, de
tal maneira que tudo à nossa volta não passa de uma ilusão, como se
estivéssemos num daqueles sonhos em que tudo parece real, mas não é. Poderá a
nossa vida ser apenas um sonho permanente de que ainda não despertámos?
Termino com um excerto da entrevista que Christof
concede a uma estação de televisão. À pergunta do entrevistador “porque nunca
descobriu Truman a verdade?”, Christof responde com toda a convicção:
“As
pessoas aceitam a realidade do mundo em que vivem. É tão simples como isso.”
Será?
Deixo-vos com o trailer do filme
(*) Produzi este texto no âmbito de uma acção de formação intitulada Por dentro do filme II - Produção de Guiões de trabalho, a partir de filmes seleccionados, que decorreu em Portimão e teve como formadora Graça Lobo. Foi a melhor acção de formação que frequentei em toda a minha vida de professor.
Bravo, Carlos! Eu também conduzo muito o olhar filosófico dos meus alunos a partir do cinema. Truman Show foi um deles, desta feita para estabelecerem a relação com David Hume e a nossa natural crença no hábito e na uniformidade da natureza.
ResponderEliminarA formação de que falas deve ter sido muito frutuosa. Que tal reproduzires uma formação similar destinada a todos os que amamos o cinema?
Abraço!
Ana Oliveira