CAPÍTULO 2
Tens a certeza de que não és uma personagem do Sims?
(Determinismo radical: tese, argumentos e principais objeções)
Bom,
antes que perguntes, respondo já: não, não costumo jogar Sims... Mas a minha filha
e as minhas sobrinhas jogavam. Seja como for, a parte que me interessa no Sims
é esta: “jogo eletrónico de simulação de vida.” O que é que isto tem a ver com
a Filosofia? Tudo. Deixa lá o joystick
e ouve.
Quem
joga Sims pode fazer uma série de escolhas divertidas e interessantes ao
“criar” as personagens. Escolher a cor dos olhos, a altura, a cor e o tipo de
cabelo: loiro, ruivo ou moreno, liso, ondulado ou frisado, por exemplo (o corte
de cabelo também está no menu). Pode também escolher traços da personalidade:
tímido ou extrovertido, alegre ou melancólico. Até o quarto pode ser escolhido
previamente (o sonho de todas as mães...). Pode escolher-se o estilo “mamã
feliz e orgulhosa”: quarto todo arrumadinho, cada coisa no seu lugar, sapatos
alinhados, até no cesto a roupa suja está virada e dobrada. Ou a versão “mãe
com os cabelos em pé”: caos completo (tipo cenário de guerra), roupa espalhada
por todo o lado, meias e sapatos órfãos de par, livros e mochila no chão,
cadeira da secretária habilmente camuflada com peças de roupa dispostas aleatoriamente,
carregador ligado à tomada sem telemóvel... E que mais pode escolher quem joga
Sims? Gostos musicais, estilo de roupa, comidas preferidas, etc., etc.
O
que te peço agora é que me acompanhes numa experiência mental, um “truque” que
os filósofos utilizam com muita frequência e algum sucesso. Trata-se de
imaginarmos uma situação que sabemos não ser real, mas que pode ser muito útil
para explicarmos as nossas ideias. Pois bem, a experiência mental que te
proponho é a seguinte.
Esquece
que o Sims é um jogo. Esquece por momentos que todas aquelas personagens foram
criadas por ti. Dá um salto para o interior do jogo e tenta imaginar como as
diferentes personagens se “veem” umas às outras. Consideremos duas possíveis
personagens.
A
Maria, por exemplo. É alta, morena e elegante. Tem cabelo preto, comprido e
ondulado, e gosta de música alternativa. Faz amigos com facilidade, é
extrovertida e adora fazer novas amizades. É daquelas pessoas que está sempre à
vontade, mesmo em situações novas com pessoas desconhecidas. Valoriza a família
acima de tudo o mais e adora crianças.
O
Miguel é tímido e introvertido. Adora desportos, a única situação em que perde
a timidez. Prefere estar sozinho. É amigo da Maria, mas nunca escolheria o
mesmo estilo de vida e a mesma profissão que ela. Mas respeita naturalmente as
opções delas, porque lhe reconhece o direito de fazer as escolhas que melhor se
adequam à sua maneira de ser.
Ao
“pensar” assim, o Miguel está a partir do princípio de que a Maria, chegado o
momento de escolher casar ou não casar, por exemplo, pode muito bem não casar.
O mesmo se aplica à profissão: poderia ter escolhido um trabalho solitário
atrás de uma secretária, mas não o fez. Ou seja, o Miguel vê nas escolhas da
Maria decisões livres. Dito de outro modo, as ações da Maria não foram
determinadas: ela usou o seu livre arbítrio.
O
Miguel pensa assim porque parte do princípio de que as ações que a Maria
realiza ao longo da sua vida são escolha sua, e apenas sua. O que escapa ao
Miguel é que as escolhas da Maria foram determinadas por algo que ela não
escolheu e que a levaram a, inevitavelmente, ter seguido o caminho que seguiu e
não outro qualquer.
A decisão de casar,
por exemplo. À primeira vista, parece que a Maria poderia ter escolhido não o
fazer. No entanto, houve duas características suas que determinaram a sua
escolha. Refiro-me à valorização da família e ao gosto por crianças. Uma
rapariga assim não escolhe não casar e não ter filhos! Esse
caminho não é, de facto, uma opção para ela. Pelo que a sua escolha não foi
livre, mas sim determinada. Neste caso, pelo seu “histórico”. Que, ao contrário
do que acontece com os computadores, nunca pode ser apagado, determinando as
nossas opções futuras.
A escolha da
profissão obedece ao mesmo padrão. A Maria tem características de personalidade
que não foram por si escolhidas: extrovertida, confiante, está tão à vontade na
vida social como peixe na água. As suas características de personalidade
determinaram as suas escolhas profissionais. Uma pessoa assim nunca escolheria
ficar uma vida inteira a trabalhar isolada atrás de uma secretária. Talvez
preferisse ir para a universidade...
Vamos agora fazer a
leitura filosófica desta experiência mental que te propus. As personagens do
Sims pensam das outras (e, também, de si mesmas) que as decisões que tomam são
escolhas livres. Mas acontece que lhes escapa um aspecto fundamental: as suas
decisões são determinadas por causas anteriores às suas escolhas e que as
encaminham para essas escolhas e não outras. Inevitavelmente, sem o poderem
evitar. Por isso, em rigor, pode-se dizer que as suas escolhas foram
determinadas e, por isso, não são livres.
Há uma teoria
filosófica que defende o que acabámos de afirmar. E vai mais longe: defende que
o mesmo se passa com os seres humanos na vida real. Esta teoria designa-se
determinismo radical. Irei explicar-te de seguida por que motivos esta
concepção do determinismo é apelidada de radical.
Para
o determinismo radical, todo o universo é determinista, ou seja, tudo o que nele acontece é
o efeito de causas físicas (naturais), incluindo as acções humanas. Ou seja,
não existe livre arbítrio. Ao não admitir excepções para o determinismo, esta
teoria retira aos seres humanos qualquer esperança de serem um caso especial no
universo. O determinista radical raciocina do seguinte modo:
Se existe
determinismo, o livre arbítrio não existe.
Existe
determinismo.
Logo, o livre
arbítrio não existe.
Por aquilo que aprendeste no
último capítulo, estás em condições de concluir que o determinismo radical é
uma teoria incompatibilista, uma vez que defende que a existência de
determinismo e de livre arbítrio são incompatíveis.
Chegado aqui, está na hora de
conheceres os argumentos utilizados pelo determinismo radical para sustentar a
sua tese. Vou apresentar-te dois dos argumentos mais utilizados pelos
defendores desta corrente filosófica.
Comecemos pelo argumento da
causalidade à distância. Este argumento parte da convicção de que as ações dos
seres humanos no momento em que as realizam têm a sua origem no seu passado
mais remoto. No início de tudo temos a herança genética que herdamos dos nossos
pais. Para o determinista radical, grande parte do que cada um de nós vem a ser
no futuro tem a ver com os genes que herdou. Mas não são apenas os genes que
determinam o que fazemos. Também a nossa infância e as influências do meio
familiar e social condicionam grandemente aquilo em que nos tornamos. Voltando
à analogia com os computadores, podemos dizer que aquilo que somos hoje é
fortemente determinado pelo “histórico” da nossa vida. Este histórico é constituído
por tudo o que nos foi acontecendo e tudo o que fomos fazendo no passado. Mas,
contrariamente ao que acontece com os computadores, o nosso histórico não pode
ser apagado para se começar do zero. Cada um de nós tem uma história pessoal
que, a par das nossas características genéticas, fez com que nos tornássemos no
que somos. Comparando com as personagens do Sims, cujas características foram
impostas e não escolhidas, poderíamos dizer que também nós somos o que não
escolhemos ser, uma vez que o que determina as nossas ações (genes e meio
ambiente durante e após a infância) são factores sobre os quais não temos
controlo. Percebes agora a provocaçãozinha que te fiz com o título tens a
certeza de que não és uma personagem do Sims?
Talvez seja a altura ideal para
resumir o argumento da causalidade à distância. Aqui vai, então:
Qualquer acção
que um agente pratique é causada por factores (genes e influências familiares e
sociais) sobre os quais não tem controlo.
Se não tem
controlo sobre o que o faz agir, o agente não tem possibilidade de escolha.
Ser livre é ter
possibilidade de escolha.
Logo, não há
acções livres.
O segundo argumento de que te
quero falar, apesar de menos subtil, é no entanto muito utilizado. Refiro-me ao argumento dos impulsos. Como o próprio nome indica,
pretende-se destacar a importância que os impulsos têm nas nossas ações. Todos
nós ouvimos falar de situações em que pessoas são “levadas” por impulsos. Isso
deve querer dizer que a pessoa não só não controlou esse impulso, como, ainda
por cima, foi controlada por ele. É isto que a expressão “foi mais forte do que
eu” quer habitualmente significar. Ora bem, o argumento dos impulsos pode ser
sintetizado assim:
Se alguém age
determinado por impulsos que não pode controlar, não age livremente.
Os impulsos
existem e interferem nas nossas acções.
Logo, não há
acções livres.
E pronto, aqui tens os dois
argumentos principais. O determinismo radical é uma teoria que tem tido
ilustres seguidores ao longo da história da Filosofia. Vou exemplificar
historicamente esta teoria com uma corrente filosófica nascida na Grécia Antiga
e que, posteriormente, se estendeu ao Império Romano. Refiro-me ao estoicismo.
Os dois mais famosos filósofos estóicos tiveram vidas completamente diferentes:
um, Epitecto, foi escravo, o outro, Marco Aurélio, foi imperador de Roma.
Selecionei um pequeno excerto de cada um deles, retirados de obras suas. Aqui
tens o primeiro excerto, de Epitecto:
“Mentaliza-te de
que és um ator de uma peça que será como o seu autor quiser que seja: curta se
a quiser curta, longa se a quiser longa. Se quiser que representes o papel de
um mendigo, procura representá-lo com naturalidade; e o mesmo se aplica ao
papel de um coxo, um juiz ou outro qualquer. O que de ti depende, pois, é isto:
representar bem o papel que te foi destinado; mas a sua escolha não depende de
ti.”
(Epicteto, Enquiridion, XVII)
Repara na metáfora que o autor utiliza: a vida
é como uma peça de teatro. Segundo ele, nós não somos os autores da nossa vida,
mas apenas actores. Ora, é sabido que aos actores lhes é atribuído um papel,
não sendo eles que escolhem o que vão fazer na peça. Epitecto defende que o
mesmo acontece comigo, contigo, com todos os seres humanos: vários
circunstâncias não escolhidas por nós determinam aquilo em que nos tornamos, o
“papel que nos foi destinado”. Nada podemos contra isso uma vez que, tal como
ele próprio te diz no texto, “a sua escolha não depende de ti”.
Agora é a vez de Marco Aurélio,
imperador de Roma:
“Não fica bem
enfurecermo-nos contra as coisas. Elas não se importam com isso.”
(Marco Aurélio, Pensamentos
Para Mim Próprio, VII, 38)
Ora
aqui está uma posição perturbadora, não te parece? Aceitar tudo o que acontece
com resignação, porque nada ganhamos em nos revoltarmos contra as coisas. Bom,
isto é decerto verdade para fenómenos como a chuva ou as estações do ano, por
exemplo. Mas será realmente assim com as pessoas?
Seja como for, não há dúvida de
que o determinismo radical é consistente com o que a ciência nos diz acerca do
funcionamento do universo. De facto, a ciência defende que o universo obedece a
leis. Quem subscreve a tese do determinismo radical não necessita, portanto, de
pôr em causa a sua crença na veracidade da ciência. Trata-se, sem dúvida, de um
ponto forte a favor do determinismo radical. Mas também há objeções fortes que
podemos colocar a esta teoria. Vejamos algumas.
Primeira: os juízos morais deixam
de fazer sentido. Com efeito, se as acções humanas são determinadas e não
existe possibilidade de escolha, não faz sentido classificar as acções como
sendo «boas» ou «más» nem responsabilizar, elogiar ou punir alguém pelos seus
actos. Ou seja, é o fim da noção de responsabilidade moral, tal como
normalmente a entendemos: quem comete um crime não é responsável por ele, quem
realiza um feito enorme não merece ser elogiado por isso. Deixo-te aqui um
desafio: imagina o discurso de um Cristiano Ronaldo determinista radical no
momento de receber a Bola de Ouro da UEFA, troféu que serve para eleger o
melhor jogador do mundo...
Segunda: implica o fim da
responsabilidade jurídica. Realmente, se o que fazemos fosse apenas determinado
por causa naturais, ninguém poderia ser
responsabilizado juridicamente pelas consequências dos seus actos. Numa
sociedade organizada segundo o determinismo radical, faria ainda sentido punir Anders Behring Breivik, o confesso autor do massacre na Noruega que
matou dezenas de jovens?
Terceira: ao conceber o ser
humano do modo como o faz, não estará o determinismo radical a transformar o
Homem num robot? Ou numa personagem
tipo Sims? Se tudo o que faz é determinado e não permite escolha, o Homem é ou
não uma espécie de máquina?
Pensa nisso.
Sem comentários:
Enviar um comentário