sexta-feira, 11 de maio de 2012

Teste intermédio de Filosofia: uma excelente resposta a uma pergunta ridícula

O Grito, de Edvard Munch


A pergunta 1 do Grupo III do teste intermédio de Filosofia de 2012 era a seguinte:

1. Leia o texto seguinte.

Ser objecto do conhecimento não significa que algo pertence ao mundo exterior, como erroneamente se supõe na linguagem vulgar, quando se opõe mundo «mundo objectivo» a «mundo subjectivo». Uma ideia pode ser objecto de conhecimento, como esta mesa; uma dor e um sonho podem ser, por exemplo, objectos de conhecimento, sem, com isso, necessitarem de pertencer ao mundo exterior. «Objectivo» diz respeito ao objecto e não implica a existência do mundo exterior.
Delfim Santos, «Da Filosofia» in Obras Completas I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982
Esclareça o sentido da frase «Ser objecto do conhecimento não significa que algo pertence ao mundo exterior».


Uma das minhas alunas respondeu assim:
Com a frase “ser objeto do conhecimento não significa que algo pertence ao mundo exterior” o autor expressa uma objeção a um dos argumentos cartesianos a favor da existência de Deus. O argumento em causa é aquele em que Descartes afirma que se tem a noção de perfeição “dentro de si”, então tem de existir necessariamente um ser com essas características. Porém, como argumenta Delfim Santos, “uma ideia pode ser objeto de conhecimento, como (...) uma dor e um sonho (...) sem, com isso, necessitarem de pertencer ao mundo exterior”. Isso também funciona com a ideia de um ser perfeito: alguém pode imaginar um ser perfeito (Deus) sem esse ser existir.

De acordo com os critérios de correção, a cotação atribuída deveria ter sido 0 (zero) pontos. E digo deveria porque resolvi atribuír-lhe a cotação máxima: 20 pontos. Obviamente. Seriam 2 (dois!) valores a menos na nota da aluna. Felizmente tratava-se de um teste intermédio, em que estas opções são permitidas aos professores corretores.
Mas a pergunta fica no ar: e se uma barbaridade destas acontecer no exame nacional?  
Até dá vontade de gritar...

13 comentários:

  1. É, sem dúvida, uma excelente resposta e como tal deve ser classificada.
    As respostas devem ser classificadas tendo como referência o cenário de resposta proposto ou outro igualmente relevante (ou até superiormente...). Assim o saibamos, nós professores, reconhecer. ;)
    Parabéns à aluna e ao professor.
    Paula

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  2. Pois é, Paula, mas se se tratasse de um exame tal não seria possível. Existe alguma margem de manobra, mas não me lembro de ter visto alguma vez critérios tão largos que permitissem atribuir a cotação máxima num caso como este. É principalmente isso que me preocupa agora.
    Serão entregues os parabéns à aluna.

    Abraço.

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  3. Aos colegas que defendem os exames nacionais essa questão não se põe, não é Carlos? Estão tão convictos que é o Exame que confere dignidade e prestígio à disciplina que não investem em mais nada a não ser na reivindicação do direito ao exame, mesmo com objetivos que consideram pouco adequados, como tem sido o caso dos testes intermédios. Que fazer?
    Paula

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  4. Paula, na ligação que fiz para este post na minha página do facebook escrevi o seguinte:

    "Nada tenho contra os exames nacionais. Pelo contrário, defendo a existência de exames no secundário, de forma equilibrada e com um peso apropriado na nota final dos alunos. Até por isso, é terrível quando os exames têm erros que descredibilizam a avaliação e prejudicam os alunos. É o caso."

    Sou, portanto, a favor do exame nacional de filosofia. Quem aposta apenas no exame e descura outros aspectos importantes faz mal, quem desvaloriza as aprendizagens avaliáveis no exame também faz mal. É um equilíbrio difícil de conseguir, de facto, mas é este o caminho. Deixo aqui alguns exemplos. Ensino o egoísmo ético para além de Kant e Stuart Mill, por ser intuitivamente forte e um ponto de vista que os alunos colocam eles próprios na discussão; ensino mais falácias informais do que as indicadas (a lista é pobre e mal escolhida); ensino e discuto com grande profundidade o problema da possibilidade do conhecimento, apesar das recentes orientações reduzirem praticamente a teoria do conhecimento ao problema da origem (pouco relevante e filosoficamente menos interessante para desenvolver competências críticas); ensino Feyerabend para além de Popper e de Kuhn, etc., etc.
    Voltando aos exames, penso que temos o dever (ético e profissional) de preparar os nossos alunos o melhor possível para um exame que pode ser determinante para as suas vidas. Não o fazer, com o argumento de que há temas muito mais interessantes a discutir, é absolutamente irresponsável. Outra coisa diferente é estarmos de acordo com a estrutura do exame ou dos testes intermédios. Eu não estou, mas se for chamado a corrigir exames aplicarei naturalmente os critérios, ainda que não concorde inteiramente com eles. E espero, também, que quem corrigir os exames dos meus alunos faça o mesmo. O momento para contestarmos os exames, os testes intermédios, os programas ou seja lá o que for não é a avaliação dos nossos alunos. Eu, por exemplo, tenho-me manifestado publicamente sobre esses assuntos, como forma de contribuir para o debate em que todos os professores de filosofia se deveriam envolver. Mas é pena que sejamos tão poucos a fazê-lo. A título de exemplo, neste blogue publiquei isto: http://afilosofiavaiaocinema.blogspot.pt/2011/03/teste-intermedio-de-filosofia-hora-do.html

    Um abraço.

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  5. Filomena Crisóstomo16 de maio de 2012 às 10:54

    É uma péssima resposta e conforma os critérios de classificação deveria ser cotada com o (zero). Barbaridade é a ignorância, pois as respostas tem de ser adequadas ao que está a ser avaliado. Há conhecimentos que o aluno de filosofia tem de possuir para responder adequadamente à questão e compreender o texto. Conhecimentos que esta aluna revela não ter.

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  6. Filomena Crisóstomo16 de maio de 2012 às 11:06

    Fico abismada que um docente de filosofia possa classificar a pergunta como ridícula. Nem consigo escrever o que me passa pela cabeça...

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Cara Filomena Crisóstomo:

    Antes de mais, obrigado pela sua visita. E, naturalmente, também pelos seus comentários, em relação aos quais gostaria de lhe pedir os esclarecimentos seguintes:

    Afirma a Filomena no 1º comentário:

    É uma péssima resposta e conforma os critérios de classificação deveria ser cotada com o (zero). Barbaridade é a ignorância, pois as respostas tem de ser adequadas ao que está a ser avaliado. Há conhecimentos que o aluno de filosofia tem de possuir para responder adequadamente à questão e compreender o texto. Conhecimentos que esta aluna revela não ter.

    Decerto terá excelentes argumentos para sustentar o que afirma. Mas, uma vez que não os apresentou, peço-lhe que o faça agora.

    1. É uma péssima resposta porquê? Acha que a resposta da aluna é tão implausível assim?
    2. Diz que as respostas têm de ser adequadas ao que está a ser avaliado. De acordo. Agora esclareça-me: o que está a ser avaliado nesta pergunta? E, já agora, diga-nos de que partes da pergunta infere isso.
    3. Que conhecimentos o aluno tem de possuir para responder adequadamente à pergunta?
    4. Em que se baseia para afirmar que a aluna revela não ter esses conhecimentos que, em sua opinião, a pergunta exige? Não admite a possibilidade da aluna ter esses conhecimentos (seja lá o que for) e não ter respondido devido ao facto da pergunta estar pura e simplesmente mal elaborada?

    Agora o 2º comentário.

    Sim, é uma pergunta ridícula pelos motivos que a seguir enuncio. Está didacticamente mal formulada, não dando ao aluno indicações claras sobre o que se pretende. A avaliar alguma coisa, avalia apenas a capacidade de interpretação de texto, apesar de, estranhamente, nem sequer exigir que o esclarecimento da frase seja apoiado no texto que é fornecido. Ainda que o aluno conseguisse "adivinhar" o que se lhe exigia nos critérios, trata-se de um conteúdo meramente instrumental e filosoficamente pouco relevante.

    E pronto, é isto. Como vê, lá consegui escrever o que tinha na cabeça. Um último pedido: pode fazer-nos o favor de responder à pergunta? É que eu, confesso-o, não fazia a mínima ideia quando a li pela primeira vez. E continuo com muitas dúvidas. Ora, uma vez que barbaridade é a ignorância, espero ansiosamente pela sua resposta para ficar um pouco menos ignorante. E menos bárbaro, já agora.
    Eu e os meus alunos agradecemos desde já.

    Com os melhores cumprimentos

    Carlos Café

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  9. Filomena Crisóstomo21 de maio de 2012 às 17:08

    Carlos Café,

    Pensei não responder,mas a minha consciência obriga-me a fazê-lo, pois considero que tem o direito de ser esclarecido.

    Contudo, os pressupostos da minha resposta são os seguintes:

    1- Não uso o sarcasmo ( como sabe não é uma forma de refutação);
    2- Não vou falar num tom professoral ou tutorial;
    3- Vou dialogar, para esclarecer e ser esclarecida.

    1º comentário

    1 - A resposta da aluna é péssima, reitero, pois ela teria de ter em consideração o texto e a questão. O texto enquadra muito bem a questão. Quem estudou a problemática do conhecimento/o ato de conhecer, compreende o texto e a questão.
    A resposta da aluna revela capacidade de reflexão e de mobilização de conhecimentos. Mas, inadequados para o assunto em análise.
    2- Está a ser avaliado o conhecimento do aluno (assim como a sua capacidade de compreensão e interpretação)sobre a problemática do conhecimento/ato de conhecer. Infiro o que afirmo, da pergunta e da sua contextualização no texto, sem qualquer dúvida.
    3- O aluno tem de saber que ao falarmos do conhecimento, falamos de uma relação entre sujeito e objeto, e saber que no conhecimento o objeto não é o objeto "em si" (como ele é independentemente do sujeito), mas o objecto é uma construção, representação feita pelo sujeito. Assim em todo o conhecimento há algo de objetivo e algo de subjetivo...Como muito bem é afirmado no texto, no conhecimento a separação feita pelo conhecimento vulgar (senso comum) entre "mundo subjetivo" e "mundo objetivo" é um erro.
    4- Baseio-me na resposta da aluna. Não considero a pergunta mal formulada, pelo contrário, quem é capaz de formular a pergunta revela domínio da matéria.

    2.º Comentário

    Reitero que não é uma pergunta ridícula pelo que já afirmei.
    A aluna não necessitava de "adivinhar", necessitava sim de ter conhecimentos para compreender o texto e a questão.

    Com os melhores cumprimentos e votos de bom trabalho.

    Filomena crisóstomo

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    1. Cara Filomena, permita-me a intromissão.

      Se formos enquadrar, como alega, a pergunta no que é dito no texto, então acho que não tem razão no que defende. O caminho que a Filomena parece seguir no que considera ser a resposta adequada afasta-se quase tanto do que Delfim Santos diz como a resposta da aluna do colega Carlos Café.

      Vejamos. Lê-se no texto de Delfim Santos que "uma ideia pode ser objecto de conhecimento, como esta mesa; uma dor e um sonho podem ser, por exemplo, objectos de conhecimento, sem, com isso, necessitarem de pertencer ao mundo exterior".

      O que quer Delfim Santos mostrar com isto?

      Que, tal como uma mesa (algo que existe ali diante de nós, no mundo exterior) também uma dor ou um sonho (que ocorrem no próprio sujeito) podem ser objectos de conhecimento. Assim, o autor quer simplesmente mostrar que o objecto é aquilo que é ou pode ser conhecido, quer seja algo que ocorre no sujeito (a dor), quer seja algo que está fora do sujeito (a mesa). Assim, o autor limita-se a esclarecer o significado literal de "objecto" de conhecimento, e o texto não vai além desta banalidade filosófica (apesar de se dar uma importância incompreensivelmente desmesurada ao assunto em muitas aulas de filosofia).

      Mas a Filomena, tal como a aluna, vai bastante além disso, pois no texto não se defende a tese substancial de que, como escreve a Filomena, «saber que no conhecimento o objeto não é o objeto "em si" (como ele é independentemente do sujeito), mas o objecto é uma construção, representação feita pelo sujeito» e que, como acrescenta, «em todo o conhecimento há algo de objetivo e algo de subjetivo». Com isto, a Filomena está a exprimir uma perspectiva semelhante à de Kant acerca a natureza do conhecimento e não apenas a esclarecer o significado de "objecto", aplicado ao conhecimento. Ora, a tese de que o objecto de conhecimento é uma construção do sujeito não só não está no texto como nem sequer é partilhada por alguns filósofos (os defensores do realismo directo, por exemplo, não a aceitariam).

      Assim, não vejo por que razão a solução proposta pela Filomena seria melhor do que a da aluna.

      Eu arrisco a dizer que, perante a intrigante banalidade da pergunta, tanto a Filomena como a aluna acharam que se exigiria algo filosoficamente mais interessante, tendo ambas elaborado uma resposta que revela capacidade de reflexão e mobilização de conhecimentos.

      E, sinceramente, acho que ambas são boas respostas.

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    2. Parabéns pela resposta.

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  11. Cara Filomena Crisóstomo

    Obrigado pela sua resposta. Subscrevo os seus pressupostos. Presumo que não pense que tenha sido sarcástico ou professoral (se pensasse, a sua referência ao assunto seria ela mesma sarcástica, o que não se compreenderia).

    Quanto ao resto, não há muito mais a dizer. A Filomena vê clareza onde eu vejo vagueza e continua a não admitir que o texto pode perfeitamente levar o aluno para outro cenário de resposta filosoficamente relevante (com uma diferença: a resposta da aluna era antes apenas péssima e barbaramente ignorante, agora reconhece que "revela capacidade de reflexão e de mobilização de conhecimentos").

    Gostava sinceramente de ter a sua fé no "domínio da matéria" de quem fez o teste intermédio, mas infelizmente não tenho. Não conheço quem os fez e apenas critico os erros da prova. Já no ano passado houve erros científicos e didácticos graves, denunciados publicamente por inúmeros professores de filosofia (eu incluído) e voltaram a verificar-se este ano.

    Defendo a existência de exames nacionais e temo que, se o exame tiver erros deste género, isso acabe por afectar ainda mais a imagem social da filosofia e, inclusivamente, o seu peso no currículo do secundário.

    Mas o que me preocupa mais são os alunos. Se uma situação destas se repetir no exame é muito provável que assistamos a uma "chuva" de recursos um pouco por todo o país. Mas esperemos que não aconteça.

    Retribuo os cumprimentos e os votos de bom trabalho. Felicidades para si e para os seus alunos.

    Carlos Café

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