sexta-feira, 18 de outubro de 2013

"Até que ponto devemos dizer a verdade?", um artigo de crítica filosófica da autoria de Joana Gonçalves

Joana Gonçalves, a jovem autora do artigo

Até que ponto devemos dizer a verdade?

por

Joana Gonçalves

Para realizar este artigo filosófico, inspirei-me numa passagem de um livro que li recentemente, “Memórias de Anne Frank”. Neste livro, o autor, Theo Coster, judeu e ex-colega de Anne, reúne cinco ex-amigos desta e recordam como eram as suas vidas durante a 2ª Guerra Mundial. Ao longo do livro, o autor acaba por recordar também a sua própria história dando-nos o testemunho em primeira mão de um sobrevivente ao Holocausto.

Numa passagem do livro, quando o autor faz referência ao seu percurso de vida, ao longo de todos aqueles anos em que os judeus foram perseguidos, conta-nos que não viveu um período atribulado tal como muitos dos seus colegas. Theo foi identificado como uma pessoa “normal” graças a um mero acaso que, segundo ele, lhe salvou a vida: algum tempo antes de se iniciar a guerra, o seu pai tinha sido obrigado a preencher um formulário sobre a ascendência dos seus avós. Este preencheu-o dizendo que Theo tinha dois avós judeus e dois não-judeus quando, na realidade, ambos os lados da família eram judeus. Quando um funcionário público recebeu esse formulário, identificou Theo como uma criança não judaica nos seus documentos de identificação, passando então a ser considerada uma criança “normal”.

O que mais me chamou à atenção na vida desta personagem é que sobreviveu à custa de uma mentira. Talvez se tivesse sido reconhecido como judeu, tal como Anne Frank fora, não tivesse tido a sorte de escapar impune a esta época histórica. Mas, afinal, até onde devemos encarar a verdade? É errado mentir em qualquer circunstância? A verdade é que na prática muitos de nós põem de parte essa hipótese. A mentira é vista por muitos como algo indesejável e incorreto. Mas será que realmente existe algum critério que separe as ações “moralmente boas” das “moralmente más” e que classifique a mentira como um ato incorreto em qualquer circunstância? Por exemplo, seria errado mentir a um criminoso que procurava um amigo nosso, de modo a salvar-lhe a vida? Deveríamos mentir para salvar a vida de alguém da nossa família?

Immanuel Kant afirma que nenhum indivíduo deve mentir em circunstância alguma e que devemos agir de acordo com o Dever e não a pensar nas consequências das nossas ações. Segundo Kant: “(…) o dever de veracidade não faz qualquer distinção entre pessoas –umas em relação às quais poderíamos ter este dever, outras a propósito das quais dele nos poderíamos dispensar– mas porque é um dever incondicionado, que vale em todas as condições.” Assim, segundo este filósofo, o pai de Theo fez mal em ter mentido para salvar a vida do filho. O seu dever era ter afirmado que este tinha quatro avós judeus, independentemente de conseguir ou não sobreviver à perseguição dos alemães, pois o mais importante era respeitar os deveres universais.

Já John Stuart Mill, um filósofo inglês do século XIX, defende uma perspectiva utilitarista, afirmando que devemos agir de modo a maximizar a felicidade, isto é, proporcionar o máximo de bem-estar ao maior número de pessoas possível. Segundo Mill, a atitude do pai de Theo foi correta pois permitiu que este sobrevivesse, sendo que qualquer pessoa na mesma situação deveria ter agido da mesma maneira.

Podemos ainda abordar a situação desta família segundo outra perspectiva: o egoísmo ético. Esta teoria diz-nos que devemos agir apenas em função do interesse de cada um e do próprio bem-estar. Ayn Rand, uma escritora de origem russa, afirma que “alcançar a própria felicidade é o objetivo moral mais elevado do ser humano”. Sendo assim, para um egoísta ético o pai de Theo agiu moralmente bem ao mentir para salvar a vida do filho pois agiu em função dos seus interesses.

Na minha opinião, a justificação do egoísmo ético face a este problema filosófico é a mais plausível. O pai do autor, ao querer salvar a sua família, sentiu-se na obrigação de mentir. É claro que muitos judeus acharam que não era o mais acertado e aceitaram o seu estatuto social, mas esta foi a forma de conseguir dar relevância aos seus interesses. Mas será que o que o pai de Theo fez foi o mais correto? Não sei e duvido que alguém saiba responder a esta questão com uma certeza absoluta. Uns considerarão que sim, outros que não. Mas deixemos isso ao critério de cada um.



COSTER, Theo, Memórias de Anne Frank, Porto, Edições Asa, 2012

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