quinta-feira, 16 de novembro de 2017

"Filosofia, alimentação e ambiente. Opções éticas e consequências ambientais das nossas escolhas alimentares".




FILOSOFIA, ALIMENTAÇÃO E AMBIENTE

Opções éticas e consequências ambientais das nossas escolhas alimentares
Andy Warhol


“Fui abandonado há três anos – continuou ele. – Tenho sobrevivido com carne de cabra, frutas e ostras. Digo-lhe que onde quer que um homem esteja ele pode lutar pela vida. Mas, meu amigo, meu coração anseia por uma comida decente. Por acaso você não tem aí um pedaço de queijo? Não? Está bem. Tenho sonhado muitas noites com queijo – assado, na maioria das vezes – e quando acordo, descubro que ainda estou aqui.”
Robert Louis Stevenson, in A Ilha do Tesouro.
           
            A citação é-lhe familiar, mas não se lembra de onde? Se tal aconteceu recentemente, é provável que tenha sido no filme Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve, onde Deckard, afastado há muito da sociedade, escolhe estas palavras para interpelar K. Tal como Ben Gunn no romance de Stevenson, o assunto escolhido para falar com alguém, passados tantos anos, é... a comida.
            Pois bem, a relação entre Filosofia e alimentação faz parte do nosso menu de hoje, pode-se até dizer que é o nosso prato do dia. Puxe de uma cadeira, sente-se à mesa e ouça. Como entrada, recordarei excertos de um texto que escrevi há já uns anos sobre filosofia e ambiente. Como prato principal será servida uma reflexão sobre algumas implicações éticas das nossas opções alimentares. Não haverá sobremesa, para que esta refeição filosófica não fique muito pesada. Mas terminaremos com um copo de vinho (tinto, se não se importar) num brinde à Filosofia, que hoje tem o seu dia mundial.

Entrada

            “As minhas recordações de férias na infância passam muito pelas histórias, imagens e odores próprios do Alentejo. Recordo-me particularmente de alguns «rituais» associados à cozinha, o lugar da casa (ou uma das «casas», como lá se diz) em torno do qual tudo girava. Manhã bem cedo, a minha avó fazia o lume e colocava perto dele duas a três panelas de ferro cheias de água. Ao longo do dia, a água quente estava assim sempre disponível, quer fosse para cozinhar, tirar as penas a uma galinha, lavar a louça, etc.
            O saco de pano em que a minha avó trazia o pão comprado no «Fialho» era feito de inúmeros retalhos de tecido guardados e reaproveitados. As refeições eram saborosas, equilibradas e de acordo com os produtos da época, a maior parte deles produzidos na própria horta. O tomate, por exemplo, era consumido em deliciosas saladas salpicado de orégãos e, uma vez amadurecido, em suculentas sopas de pão. Até a manteiga era feita sábia e pacientemente em casa, a partir do leite das duas vacas que os meus avós tinham lá nos fundos da pequena quinta. E lembro-me ainda das idas semanais ao pitoresco mercado de Évora, onde nos abastecíamos de peixe, cação, queijos curados e outros produtos que, por não se produzirem em casa, tinham de ser adquiridos nos mercados.
            Hoje em dia tudo é diferente, como sabemos. O país evoluiu em relação a aspectos básicos indispensáveis a uma razoável qualidade de vida, como o saneamento e o conforto, por exemplo. Mas também é verdade que o progresso trouxe consigo o esquecimento de ensinamentos, preocupações e práticas que radicam numa sabedoria de vida ancestralmente consolidada. Os meus avós sabiam que os recursos têm um preço e utilizavam-nos com parcimónia e sensatez. Eram eles quem se adaptava à natureza, em vez de a adaptarem a exigências de consumo supérfluas. Diferentemente, a realidade atual caracteriza-se, entre outras coisas, pela consolidação de necessidades outrora dispensáveis cujo custo ambiental é elevadíssimo.”

Prato do dia

            Só o prazer conta?
            Comer é um dos prazeres mais populares. “É o que se leva desta vida” ou “posso poupar em muita coisa, mas na comida não!” são frases que todos já ouvimos (e, alguns de nós, proferimos) pelo menos algumas vezes. Filosoficamente, esta atitude tem um nome: hedonismo. Um hedonista é alguém que defende que o prazer é a coisa mais importante nas nossas vidas. O filósofo inglês John Stuart Mill definiu o prazer de comer como um “prazer inferior” (ligado às necessidades físicas) como o sexo e beber, em oposição ao que designava como “prazeres superiores” (associados ao pensamento, sentimento e imaginação), resultantes da experiência da beleza, do amor, do conhecimento ou da criação artística, por exemplo. Mas, independentemente de se concordar ou não com a hierarquia de prazeres proposta por Mill, há quem considere que há coisas mais importantes do que o prazer. No caso do prazer de comer, por exemplo, defendem que temos deveres éticos incomparavelmente mais importantes.
            Quando o dever se sobrepõe ao prazer: somos o que comemos ou definimo-nos por aquilo que nos recusamos a comer?
            Boa pergunta, a que decerto o filósofo gostaria de tentar responder. Mas por quê o filósofo? Porque ele conhece as teorias do passado, para além de estar atento às que surgem no seu tempo. Mas, mais importante do que isso, o filósofo pensa “fora da caixa”, o que lhe permite interpretar os sinais dos tempos e colocar e avaliar cenários de “mundos possíveis”, para utilizar um conceito cunhado pelo filósofo alemão Leibniz no século XVII. O filósofo cria e antecipa as ideias do futuro, tal como o artista cria e nos ensina a ver e sentir o futuro que ainda não existe. Ora, e não é preciso ser filósofo para saber isso, os mundos possíveis de hoje serão, muito provavelmente, os mundos reais de amanhã. Um exemplo apenas: imaginem o que as grandes cadeias de restaurantes como o McDonald´s teriam poupado em processos e contestação social se estivessem atentos às novas tendências alimentares que se iam consolidando nos anos 60 e 70 do século passado...
            Mas visitemos por breves momentos a história da filosofia. As opções alimentares marcadas pela rejeição dos alimentos habituais não surgiram por acaso. Têm antecedentes históricos e, muitas vezes, razões filosóficas por detrás. O vegetarianismo é um exemplo disso mesmo. Xenófanes conta de Pitágoras, célebre matemático e filósofo do séc. VI a. C., o episódio seguinte:

            Diz-se que uma vez, passando por um cão a quem batiam, o lamentou, proferindo tais palavras: “Pára, não batas mais, porque é a alma de um amigo que reconheci, ao ouvir a sua voz.”
Maria Helena da Rocha Pereira, in Hélade – Antologia da Cultura Grega, 4ª edição, pp. 120

            Pitágoras defendia a teoria da metempsicose (ou teoria da transmigração das almas), segundo a qual a alma humana poderia encarnar noutros corpos, incluindo corpos de animais. Provavelmente por isso, os seguidores do pitagorismo viriam a adotar o vegetarianismo, assumindo um estilo de vida que conhecerá diferentes matizes no mundo ocidental.
            Pode ser-se vegetariano por diferentes razões: de saúde, religiosas ou outras. Mas também por razões filosóficas. O mais habitual é as pessoas tornarem-se vegetarianas porque gostam dos animais e não querem alimentar-se deles. Consideram que os animais têm direito a viver de acordo com a sua natureza e que a espécie humana não tem o direito de os privar disso. Este argumento é filosófico, do âmbito da ética. Em Portugal, foi aprovada a 3 de março deste ano por todos os partidos (com abstenções do PSD e do CDS) a lei que torna obrigatória a existência de um prato vegetariano nas cantinas públicas. Pessoalmente, tenho constatado que são cada vez em maior número os alunos e alunas que optam pelo vegetarianismo, em versões mais soft ou vegan (mais radical). Quando querem saber o que penso sobre isso, digo-lhes fundamentalmente duas coisas: que têm todo o direito a decidir o que comer e que devem informar-se o melhor possível sobre a dieta alimentar que pretendem seguir, procurando informação científica e ignorando a pseudociência que, também nesta área, faz furor nas redes sociais.
            Prazer de comer e custos ambientais: onde comprar os alimentos? 
            Afirmei no texto inicial, a propósito dos meus avós alentejanos, que eram eles “quem se adaptava à natureza, em vez de a adaptarem a exigências de consumo supérfluas.” A opção (filha da necessidade, pois claro) por se alimentarem do que a natureza disponibilizava naquele lugar e naquela altura é, provavelmente, a mais ambientalmente sustentável que podemos adotar. É claro que é uma vantagem termos à disposição num hipermercado, a preços acessíveis, quase todos os alimentos durante quase todo o ano. Mas o preço a pagar por esse “luxo” não será excessivamente alto? Vejamos um exemplo prático.
            O consumidor A e o consumidor B vão receber os amigos em suas casas, no sábado à noite. Ambos querem proporcionar-lhes um jantar agradável inspirado na dieta mediterrânica. A ementa de A é a seguinte: tábua de queijos e patê de entrada (França); dourada (aquacultura, da Grécia) assada no forno com batatas (da Bélgica) e salada; como sobremesa, tarte de maçã (Alemanha) comprada num hipermercado. Quanto ao consumidor B, a ementa, integralmente obtida no mercado municipal, será a seguinte: paio e queijo (Alentejo), de entrada; sargo (do Algarve) assado com salada de batata Império (Monchique) e alface; como sobremesa, requeijão com compota de abóbora (feita em casa) e figos (do Algarve, claro) com mel de Monchique. É provável que A tenha gasto um pouco menos do que B. Quanto à qualidade dos produtos, é tão óbvia a diferença que nem vale a pena falar. Mas fica aqui o desafio: quais terão sido os custos ambientais de uma refeição e de outra? Pois é, quem diria que um banal jantar de amigos teria tantas consequências ambientais para todos nós...  

Um brinde final

            Naturalmente, muito mais haveria para dizer. Comprar os alimentos em quantidades excessivas por ser mais barato (e depois ir para o lixo) ou fazer comida a mais que depois ninguém come são alguns dos erros habituais que cometemos no dia-a-dia. Estes e outros comportamentos têm consequências financeiras e ambientais. Teremos nós o dever de pensar nisso quando escolhemos o que comer? Um hedonista, como vimos, diria que não. Quem defende que temos também responsabilidades éticas para com os animais e a natureza pensa que sim. Talvez um dia deixemos de olhar para a natureza como propriedade da nossa espécie e vejamos nela um jardim que temos de tratar e cuidar. E possamos então sentir e dizer, como o Mestre Alberto Caeiro: “sou uma coisa natural – Por exemplo, a árvore antiga”.

            Despeço-me com uma história. Era uma vez um jardineiro que amava tanto a natureza que decidiu deixar de ser jardineiro e tornar-se uma das coisas do seu jardim. Um dia foi girassol, num outro um pássaro que voa lá no alto, num outro ainda o regato ao pé da árvore. Todos os dias era outro; e mesmo quando não era outro mas o mesmo, ele era o mesmo de uma outra maneira. Um dia em que acordou porque sim, lembrou-se de dar um nome próprio a cada coisa. Mas depois cansou-se (ou faltaram-lhe as palavras) e voltou a ser Criança e desaprendeu tudo e começou tudo de novo: Era uma vez um jardineiro…

            Vivam a Vida, a Natureza e a Filosofia.
            Brindemos a isso!

Carlos Café, 16/11/2017, no Dia Mundial da Filosofia