FILOSOFIA, ALIMENTAÇÃO E
AMBIENTE
Opções éticas e consequências
ambientais das nossas escolhas alimentares
Andy Warhol |
“Fui abandonado há três anos – continuou ele. –
Tenho sobrevivido com carne de cabra, frutas e ostras. Digo-lhe que onde quer
que um homem esteja ele pode lutar pela vida. Mas, meu amigo, meu coração
anseia por uma comida decente. Por acaso você não tem aí um pedaço de queijo?
Não? Está bem. Tenho sonhado muitas noites com queijo – assado, na maioria das
vezes – e quando acordo, descubro que ainda estou aqui.”
Robert
Louis Stevenson, in A Ilha do Tesouro.
A
citação é-lhe familiar, mas não se lembra de onde? Se tal aconteceu
recentemente, é provável que tenha sido no filme Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve, onde Deckard, afastado há
muito da sociedade, escolhe estas palavras para interpelar K. Tal como Ben Gunn
no romance de Stevenson, o assunto escolhido para falar com alguém, passados
tantos anos, é... a comida.
Pois
bem, a relação entre Filosofia e alimentação faz parte do nosso menu de hoje, pode-se até dizer que é o
nosso prato do dia. Puxe de uma
cadeira, sente-se à mesa e ouça. Como entrada,
recordarei excertos de um texto que escrevi há já uns anos sobre filosofia e
ambiente. Como prato principal será
servida uma reflexão sobre algumas implicações éticas das nossas opções
alimentares. Não haverá sobremesa,
para que esta refeição filosófica não fique muito pesada. Mas terminaremos com
um copo de vinho (tinto, se não se importar) num brinde à Filosofia, que hoje
tem o seu dia mundial.
Entrada
“As minhas
recordações de férias na infância passam muito pelas histórias, imagens e
odores próprios do Alentejo. Recordo-me particularmente de alguns «rituais»
associados à cozinha, o lugar da casa (ou uma das «casas», como lá se diz) em
torno do qual tudo girava. Manhã bem cedo, a minha avó fazia o lume e colocava
perto dele duas a três panelas de ferro cheias de água. Ao longo do dia, a água
quente estava assim sempre disponível, quer fosse para cozinhar, tirar as penas
a uma galinha, lavar a louça, etc.
O saco de pano em que a minha avó
trazia o pão comprado no «Fialho» era feito de inúmeros retalhos de tecido
guardados e reaproveitados. As refeições eram saborosas, equilibradas e de
acordo com os produtos da época, a maior parte deles produzidos na própria
horta. O tomate, por exemplo, era consumido em deliciosas saladas salpicado de
orégãos e, uma vez amadurecido, em suculentas sopas de pão. Até a manteiga era
feita sábia e pacientemente em casa, a partir do leite das duas vacas que os
meus avós tinham lá nos fundos da pequena quinta. E lembro-me ainda das idas
semanais ao pitoresco mercado de Évora, onde nos abastecíamos de peixe, cação,
queijos curados e outros produtos que, por não se produzirem em casa, tinham de
ser adquiridos nos mercados.
Hoje em dia tudo é diferente, como
sabemos. O país evoluiu em relação a aspectos básicos indispensáveis a uma
razoável qualidade de vida, como o saneamento e o conforto, por exemplo. Mas
também é verdade que o progresso trouxe consigo o esquecimento de ensinamentos,
preocupações e práticas que radicam numa sabedoria de vida ancestralmente
consolidada. Os meus avós sabiam que os recursos têm um preço e utilizavam-nos
com parcimónia e sensatez. Eram eles quem se adaptava à natureza, em vez de a
adaptarem a exigências de consumo supérfluas. Diferentemente, a realidade atual
caracteriza-se, entre outras coisas, pela consolidação de necessidades outrora
dispensáveis cujo custo ambiental é elevadíssimo.”
Prato do dia
Só o prazer conta?
Comer
é um dos prazeres mais populares. “É o
que se leva desta vida” ou “posso
poupar em muita coisa, mas na comida não!” são frases que todos já ouvimos
(e, alguns de nós, proferimos) pelo menos algumas vezes. Filosoficamente, esta
atitude tem um nome: hedonismo. Um hedonista é alguém que defende que o prazer
é a coisa mais importante nas nossas vidas. O filósofo inglês John Stuart Mill
definiu o prazer de comer como um “prazer inferior” (ligado às necessidades
físicas) como o sexo e beber, em oposição ao que designava como “prazeres
superiores” (associados ao pensamento, sentimento e imaginação), resultantes da
experiência da beleza, do amor, do conhecimento ou da criação artística, por
exemplo. Mas, independentemente de se concordar ou não com a hierarquia de
prazeres proposta por Mill, há quem considere que há coisas mais importantes do
que o prazer. No caso do prazer de comer, por exemplo, defendem que temos
deveres éticos incomparavelmente mais importantes.
Quando o dever se sobrepõe ao prazer: somos
o que comemos ou definimo-nos por aquilo que nos recusamos a comer?
Boa
pergunta, a que decerto o filósofo gostaria de tentar responder. Mas por quê o
filósofo? Porque ele conhece as teorias do passado, para além de estar atento
às que surgem no seu tempo. Mas, mais importante do que isso, o filósofo pensa
“fora da caixa”, o que lhe permite interpretar os sinais dos tempos e colocar e
avaliar cenários de “mundos possíveis”, para utilizar um conceito cunhado pelo
filósofo alemão Leibniz no século XVII. O filósofo cria e antecipa as ideias do
futuro, tal como o artista cria e nos ensina a ver e sentir o futuro que ainda
não existe. Ora, e não é preciso ser filósofo para saber isso, os mundos
possíveis de hoje serão, muito provavelmente, os mundos reais de amanhã. Um
exemplo apenas: imaginem o que as grandes cadeias de restaurantes como o
McDonald´s teriam poupado em processos e contestação social se estivessem
atentos às novas tendências alimentares que se iam consolidando nos anos 60 e
70 do século passado...
Mas
visitemos por breves momentos a história da filosofia. As opções alimentares marcadas
pela rejeição dos alimentos habituais não surgiram por acaso. Têm antecedentes
históricos e, muitas vezes, razões filosóficas por detrás. O vegetarianismo é
um exemplo disso mesmo. Xenófanes conta de Pitágoras, célebre matemático e
filósofo do séc. VI a. C., o episódio seguinte:
Diz-se
que uma vez, passando por um cão a quem batiam, o lamentou, proferindo tais
palavras: “Pára, não batas mais, porque é a alma de um amigo que reconheci, ao
ouvir a sua voz.”
Maria Helena da Rocha
Pereira, in Hélade – Antologia da Cultura
Grega, 4ª edição, pp. 120
Pitágoras
defendia a teoria da metempsicose (ou teoria da transmigração das almas),
segundo a qual a alma humana poderia encarnar noutros corpos, incluindo corpos
de animais. Provavelmente por isso, os seguidores do pitagorismo viriam a
adotar o vegetarianismo, assumindo um estilo de vida que conhecerá diferentes
matizes no mundo ocidental.
Pode
ser-se vegetariano por diferentes razões: de saúde, religiosas ou outras. Mas
também por razões filosóficas. O mais habitual é as pessoas tornarem-se
vegetarianas porque gostam dos animais e não querem alimentar-se deles.
Consideram que os animais têm direito a viver de acordo com a sua natureza e
que a espécie humana não tem o direito de os privar disso. Este argumento é
filosófico, do âmbito da ética. Em Portugal, foi aprovada a 3 de março deste
ano por todos os partidos (com abstenções do PSD e do CDS) a lei que torna
obrigatória a existência de um prato vegetariano nas cantinas públicas.
Pessoalmente, tenho constatado que são cada vez em maior número os alunos e
alunas que optam pelo vegetarianismo, em versões mais soft ou vegan (mais
radical). Quando querem saber o que penso sobre isso, digo-lhes
fundamentalmente duas coisas: que têm todo o direito a decidir o que comer e
que devem informar-se o melhor possível sobre a dieta alimentar que pretendem
seguir, procurando informação científica e ignorando a pseudociência que,
também nesta área, faz furor nas redes sociais.
Prazer de comer e custos ambientais: onde
comprar os alimentos?
Afirmei
no texto inicial, a propósito dos meus avós alentejanos, que eram eles “quem se
adaptava à natureza, em vez de a adaptarem a exigências de consumo supérfluas.”
A opção (filha da necessidade, pois claro) por se alimentarem do que a natureza
disponibilizava naquele lugar e naquela altura é, provavelmente, a mais
ambientalmente sustentável que podemos adotar. É claro que é uma vantagem termos
à disposição num hipermercado, a preços acessíveis, quase todos os alimentos
durante quase todo o ano. Mas o preço a pagar por esse “luxo” não será
excessivamente alto? Vejamos um exemplo prático.
O
consumidor A e o consumidor B vão receber os amigos em suas casas, no sábado à
noite. Ambos querem proporcionar-lhes um jantar agradável inspirado na dieta
mediterrânica. A ementa de A é a seguinte: tábua de queijos e patê de entrada
(França); dourada (aquacultura, da Grécia) assada no forno com batatas (da
Bélgica) e salada; como sobremesa, tarte de maçã (Alemanha) comprada num
hipermercado. Quanto ao consumidor B, a ementa, integralmente obtida no mercado
municipal, será a seguinte: paio e queijo (Alentejo), de entrada; sargo (do
Algarve) assado com salada de batata Império (Monchique) e alface; como
sobremesa, requeijão com compota de abóbora (feita em casa) e figos (do Algarve,
claro) com mel de Monchique. É provável que A tenha gasto um pouco menos do que
B. Quanto à qualidade dos produtos, é tão óbvia a diferença que nem vale a pena
falar. Mas fica aqui o desafio: quais terão sido os custos ambientais de uma
refeição e de outra? Pois é, quem diria que um banal jantar de amigos teria
tantas consequências ambientais para todos nós...
Um brinde final
Naturalmente,
muito mais haveria para dizer. Comprar os alimentos em quantidades excessivas
por ser mais barato (e depois ir para o lixo) ou fazer comida a mais que depois
ninguém come são alguns dos erros habituais que cometemos no dia-a-dia. Estes e
outros comportamentos têm consequências financeiras e ambientais. Teremos nós o
dever de pensar nisso quando escolhemos o que comer? Um hedonista, como vimos,
diria que não. Quem defende que temos também responsabilidades éticas para com
os animais e a natureza pensa que sim. Talvez um dia deixemos de olhar para a
natureza como propriedade da nossa espécie e vejamos nela um jardim que temos
de tratar e cuidar. E possamos então sentir e dizer, como o Mestre Alberto
Caeiro: “sou uma coisa natural – Por
exemplo, a árvore antiga”.
Despeço-me com uma história.
Era uma vez um jardineiro que amava tanto a natureza que decidiu deixar de ser
jardineiro e tornar-se uma das coisas do seu jardim. Um dia foi girassol, num
outro um pássaro que voa lá no alto, num outro ainda o regato ao pé da árvore.
Todos os dias era outro; e mesmo quando não era outro mas o mesmo, ele era o
mesmo de uma outra maneira. Um dia em que acordou porque sim, lembrou-se de dar
um nome próprio a cada coisa. Mas depois cansou-se (ou faltaram-lhe as
palavras) e voltou a ser Criança e desaprendeu tudo e começou tudo de novo: Era uma vez um jardineiro…
Vivam
a Vida, a Natureza e a Filosofia.
Brindemos
a isso!
Carlos Café, 16/11/2017, no Dia Mundial da Filosofia