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Auto retrato com flor no bolso |
«Filosofia» significa, etimologicamente, «amor à sabedoria». Baptizada
com nome de mulher («sofia» ou sabedoria), a Filosofia tem originado ao longo
da história reacções díspares. Pessoalmente, tenho mantido com a Filosofia uma
relação amorosa nem sempre pacífica. Como todas as histórias de amor, também
ela tem tido altos e baixos. As reflexões intimistas despertam em nós
recordações e a tentação de fazermos balanços põe-se à espreita. Oscar Wilde
dizia que o único modo de nos libertarmos de uma tentação é ceder-lhe. Pois que
assim seja.
Deslumbramento. Tenho para aí 13 ou 14
anos. Há assuntos que me intrigam, ideias que me atraem. A vida de cada um de
nós é um «livro em branco»? Quem decide o que nele se escreve? Conforta-me a
ideia de que somos nós próprios, incomoda-me a possibilidade de que tudo esteja
já «escrito». É o meu primeiro amor filosófico, o problema do livre arbítrio.
Voltarei a ele regularmente, com o carinho especial que dedicamos ao primeiro
amor. Curiosamente, é também o problema filosófico que os alunos de Filosofia
do Secundário estudam em primeiro lugar. Agrada-me a ideia de passagem de
testemunho.
Namoro, noivado, casamento.
O namoro dura dois anos no liceu, o noivado assumido prolonga-se pelos quatro
de Faculdade. Tenho agora vinte e dois anos e acabei o curso. As férias de
Verão desse ano são a minha despedida de solteiro. Creio poder dizer que me
casei oficialmente com a Filosofia a 21 de Outubro de 1984, em Pinhel, onde me
apresento para dar aulas de Filosofia pela primeira vez. Em vez do tradicional
«pode beijar a noiva», ouço do presidente do conselho directivo um
lacónico «Aqui tem o seu horário. Tem uma aula logo às sete e meia da noite».
O meu colega de grupo apadrinha o acontecimento e «tranquiliza-me» deste modo:
«Olha, pá, isto não tem nada que saber. Chegas lá, fazes a chamada, escreves
o sumário no quadro e enrolas os tipos a falar do programa, blá blá blá, e
pronto, está a tocar para sair». Pois, o pior era o blá blá blá…
Não fazia a mínima ideia do que era suposto dizer-se numa aula de apresentação
e não me lembro minimamente do que disse. Recordo-me bem, isso sim, do que
aconteceu depois. Era uma turma de adultos (quase todos mais velhos do que eu…)
e a «aula» continuou no bar de um deles, até tarde. Estava frio e pairava no ar
um aconchegante odor a lareira. Levaram-me de madrugada à estação para apanhar
o comboio. Era quase manhã quando entrei em casa. Esgotado e um tanto
«ressacado», como acontece por vezes na noite de núpcias.
Crise conjugal. Passado o entusiasmo
próprio dos primeiros anos, os sintomas começam a aparecer. Seria impressão
minha, ou era cada vez mais difícil suscitar nos alunos perplexidades que os
estimulassem? Darei conta mais tarde de que o problema não residia neles nem em
mim, mas sim nos programas da altura. Não é impossível motivar os jovens para a
Filosofia a partir dos autores ou de uma perspectiva histórica. Mas é mais
difícil e, se calhar, pedagogicamente menos recomendável. As teorias dos
filósofos são respostas mais ou menos acabadas a problemas que se mantêm em
aberto. E a história da Filosofia (como a história da Arte ou da Ciência),
encontra um fio condutor que, embora ordene e «aconchegue» as ideias, esquece
por vezes o terreno essencial de onde brotaram: a pergunta. Aprender a
filosofar, em vez de aprender a Filosofia, como dizia Immanuel Kant. O caminho
parece ser esse. No fundo, trata-se de um regresso: o regresso ao espanto
inicial, à interrogação crítica, à perplexidade do primeiro olhar. Apaixonar-me
de novo? Porque não?
Paixão da meia idade. Ressurge a ousadia,
renasce o desejo. A atenção centra-se no que é novo, no que nos faz
sentir jovens outra vez. Felizmente para mim, este renascimento é um acto de
fidelidade e não o contrário. Não tenho de ser infiel, não é necessário
procurar fora da Filosofia o que procuro, porque ela continua jovem e sedutora.
Volto à faculdade, desta vez para um mestrado em Filosofia da Natureza e do
Ambiente. Encontro a Filosofia mais atraente do que nunca. Rejuvenescida,
surpreende-me com novos e contemporâneos problemas: Apenas os seres
humanos têm valor intrínseco ou também o têm os animais e as plantas? É
moralmente errado fazer desaparecer espécies animais e vegetais? Uma espécie em
vias de extinção tem mais valor do que uma espécie que o não seja? Temos o
dever de manter zonas selvagens na natureza?
Iludam-se, portanto, os que vêem na Filosofia
uma senhora idosa e respeitável, mas irredutivelmente ultrapassada pelo tempo.
Como se pode ver, ela soube descobrir o elixir da juventude que nos mantém
vivos: a capacidade de nos interrogarmos a nós próprios. Perdê-la seria
catastrófico, porque ficaríamos sem a chama da racionalidade que distingue a
civilização da barbárie. Perdê-la seria ficarmos mais pobres, porque ficaríamos
privados do mais subtil dos prazeres do Homem: o prazer de pensar.