quarta-feira, 20 de junho de 2012

Por que atribuo a nota de 14 valores ao exame de Filosofia


POR QUE ATRIBUO A NOTA DE 14 VALORES AO EXAME DE FILOSOFIA

APRECIAÇÃO CRÍTICA DA PROVA ESCRITA DE FILOSOFIA
(Prova 714/1ª fase)

Esta apreciação é feita sem conhecer ainda os critérios de avaliação. É uma reflexão pessoal de quem foi coadjuvante no exame. Também faço referência a comentários dos meus alunos na conversa que tivemos no final, devidamente assinalados.

1. Apreciação global: o exame é francamente melhor que os dois testes intermédios conhecidos, tendo sido evitados alguns dos erros apontados naqueles. Se a minha leitura está certa, os autores optaram por “jogar à defesa”. Aceito esta estratégia defensiva: se as polémicas se repetissem, tal poderia ter consequências devastadoras para a credibilidade da disciplina e, eventualmente, para a continuação do exame. Penso que os autores foram sensatos.

2. Pontos a favor: desaparecem os conteúdos vagos ou de relevância filosófica discutível (sujeito e objeto, p. ex.), os conteúdos/autores convocados são relevantes e aparece finalmente uma pergunta de avaliação crítica (o aluno toma posição sobre um problema filosófico).

3. Pontos contra: Predomínio de competências cognitivamente pouco exigentes: “identifique a tese”, “nomeie” (duas vezes), “exponha” e “explicite”. Pouca importância atribuída a competências críticas. Continuam a existir erros ou, no mínimo, opções científica e pedagogicamente muito duvidosas (ver adiante).

4. Comentários ao exame (grupo a grupo)
4.1. GRUPO I.
Sobre 1.: texto bem escolhido, o que se exige ao aluno é muito pouco (praticamente apenas competências de interpretação de texto).
Sobre 2: texto bem escolhido, a opção pela escolha múltipla aceita-se, embora seja também pouco exigente. Sobre 2.1.: avalia-se apenas interpretação de texto. Sobre 2.2., 2.3. e 2.4.: exigem-se conhecimentos relevantes sobre os autores, embora as opções certas sejam óbvias. Sobre 3: o texto é irrelevante para a pergunta, limitando-se a fazer referência à “posição original”. O que se exige na pergunta tem conteúdo filosófico relevante, tendo o aluno de fazer referência a outros conceitos fundamentais de Rawls (véu de ignorância, princípio maximin, justiça como equidade, p. ex.).
4.3. GRUPO II
Sobre 1.: texto bem escolhido. Sobre 1.1.: A expressão “mau uso da retórica” é valorativa. Deveria ter-se acrescentado: “segundo Platão” ou “a que o texto faz referência”. Um aluno meu, um “nietzscheniano” convicto, classificou no final a pergunta como “tendenciosa”. Acho que ele tem razão.
Sobre 1.2.: conteúdo relevante, embora a pergunta seja uma vez mais pouco exigente (“exponha”...).
Sobre 2.1.: a resposta certa (“pretende obter a adesão livre do auditório”) utiliza “livre” como relevante para a escolha da resposta certa, o que não é verdade. Para além de complicar desnecessariamente (o que é uma adesão livre?), em rigor o carácter “livre” da adesão não é exclusivo da boa argumentação. Na manipulação retórica o auditório não é propriamente “obrigado” a aderir, certo?
Sobre 2.3.: A resposta certa (“parecem ser dedutivamente válidos”) está mal formulada. O que é relevante não é que os argumentos pareçam ser válidos, mas sim que pareçam e o não sejam. Da afirmação “João parece estar feliz” não se infere que João não esteja feliz. Os argumentos dedutivamente válidos também parecem ser dedutivamente válidos...
Sobre 2.4.: A resposta certa (“relação de consequência entre proposições”) está mal formulada. A relação entre proposições não tem de ser de “consequência” (seria mais intuitivo apresentar o conceito de implicação).
GRUPO III
Por que não a referência explícita a “inspetor de circunstância”?
GRUPO IV
O texto é bem escolhido.
Sobre 1.1.: pouco exigente (“nomear”)
Sobre 1.2.: pergunta relevante e bem formulada.
Sobre 2.: pergunta algo vaga (confrontar “as ideias expressas no texto de Hume com o racionalismo de Descartes”), apesar das indicações de resposta atenuarem em parte a vagueza da confrontação exigida. Alguns dos meus alunos estavam pouco seguros quanto ao que lhes era exigido. Resta esperar pelos critérios de correção...
Sobre 3.: finalmente, o aluno pode falar na primeira pessoa!

CONCLUSÃO: apesar das falhas ou opções erradas que, em minha opinião, o exame tem, penso que hoje foi um dia positivo para o ensino da filosofia. Embora não se tenha ido tão longe quanto seria desejável, estamos na presença de um exame de... filosofia. E isso é uma boa notícia.
Numa escala de 0 a 20, atribuo ao exame a nota de 14.



4 comentários:

  1. Café, só esta tarde vi a prova e concordo com quase tudo o que dizes. Mas, ainda assim, acho que continua a ser uma prova de fraca qualidade. Por três razões principais: 1) desequilíbrio quanto às capacidades testadas; 2) desequilíbrio quanto aos conteúdos ou às matérias testadas; 3) continua a haver perguntas mal formuladas e perguntas de escolha múltipla sem qualquer opção correcta.

    Quanto a 1) basta ver que quase só se pede, como referes, para explicar O TEXTO, nomear o que refere O TEXTO, identificar o que diz O TEXTO, explicitar o que está no TEXTO, expor a partir do TEXTO. Ou seja, quase tudo sobre apenas uma das capacidades listadas pelo próprio GAVE. Nada sobre as competências de problematização, quase nada sobre as competências de conceptualização e pouco sobre competências argumentativas.

    Quanto a 2) continua a ser dada uma importância desmesurada a matérias cujo interesse é pouco mais do que histórico, como é o caso das perguntas sobre a retórica, mas excluem-se a estética e a filosofia da religião. Isto apesar de o programa destinar 3 aulas ao tema da argumentação e retórica, ao passo que destina 8 (quase o triplo) à estética ou filosofia da religião.

    Já agora, a pergunta sobre a ideia de Deus na filosofia de Hume trata de matérias não contempladas nas orientações. Note-se que as orientações referem a teoria do conhecimento de ambos, mais precisamente sobre o problema da origem do conhecimento (empirismo/racionalismo). Só muito indirectamente a pergunta tem algo que ver com isso.

    Quanto a 3), a opção dada como certa para a 2.4 do grupo I, não é correcta, pois apesar de Kant pensar tal coisa, não é isso que a lei citada significa. Note-se que no tronco da pergunta pede-se o significado da máxima kantiana e o significado não é o que está na opção A.

    As perguntas 2.2 e 2.3. do mesmo grupo não são perguntas sobre o texto, pois o texto nada diz sobre isso, ainda que Kant e Mill defendam tais coisas. Note-se que se começa por pedir as opções "adequadas ao sentido do texto".

    Mas a pior de todas foi a que já apontaste: na 2.3. do grupo II não há qualquer opção correcta. A resposta dada como certa é simplesmente falsa, pois há carradas de argumentos que PARECEM ser dedutivamente válidos e que não são falaciosos. Pela simples razão de que muitos argumentos que são dedutivamente válidos parecem efectivamente ser dedutivamente válidos.

    Em suma, esta prova é melhorzita do que os testes intermédios, mas revela falta de rigor didáctico e científico. E, já agora, até académico (veja-se, por exemplo, a referência bibliográfica do texto do Espinosa).

    Por mim, ficava-se pelo 9,5. Dava para passar, com alguma boa vontade.

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  2. Infelizmente, tendo a concordar mais com o Aires Almeida do que com o Carlos Café.

    Embora concorde que o exame evolui positivamente face ao teste intermédio, continuo a achar que é desequilibrado, testando conteúdos pouco relevantes e deixando de fora conteúdos centrais, mas também por testar conteúdos centrais de modo desinteressante, como a escolha múltipla mal-amanhada para Stuart Mill e Kant.

    Mas há uma situação que me parece pior no exame do que no teste intermédio: a diferença de grau de dificuldade entre a pergunta de lógica aristotélica(LA)a e a de lógica proposicional (LP). Por que razão as proposições na pergunta de LA aparecem todas na sua expressão canónica e na de LP não? Por que razão o tipo de exercício de LA é igualzinho ao do teste intermédio e no de LP exige-se agora o domínio do âmbito de um operador?
    E porque se introduz um argumento com três variáveis,a não ser para complicar, que nada acrescenta ao conteúdo a testar, a saber, a construção de tabelas de verdade?

    Não acho que a pergunta de LP seja desajustada (com excepção da opção por três variáveis). Contudo, não me parece sério que, dando o programa alternativa aos professores de escolherem leccionar LA ou LP, as perguntas apareçam no exame com diferente grau de dificuldade.

    Assim, nem ao 9,5 chega a minha avaliação. Fico-me pelo 9. Está melhor, mas ainda chumba.

    Teresa Antunes

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    1. Não tinha reparado no aspecto para que a Teresa chama aqui a atenção. É bem observado e acho que tem toda a razão. Não me atrevo a pensar que a ideia dos autores da prova é sugerir aos professores que leccionam LP para leccionarem antes LA. Os exames não devem servir para dar lições, vender ideias, fazer política ou mostrar seja o que for; devem servir apenas para avaliar os alunos de forma imparcial, justa e cientificamente irrepreensível.

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  3. Teresa Antunes

    Subscrevo a sua crítica à diferença no grau de dificuldade. No comentário que fiz, logo a seguir ao exame e sem conhecer ainda os critérios, centrei-me naquilo que me pareceu mais relevante destacar como análise global. Já li entretanto alguns comentários (não muitos: onde andam os professores de Filosofia? Será que o exame lhes passa ao lado?) e continuo a achar que o mais grave de tudo são os erros científicos. Nós, professores, podemos explicar aos nossos alunos que há diferentes opções didácticas e tudo o mais. Mas NÃO podemos deixar passar em claro erros científicos. Quanto à nota (uma brincadeira que afinal pode ser muito intuitiva) não vejo razões para a alterar. Se isto fosse um recurso (eh eh) fundamentaria do seguinte modo: tomei como ponto de partida a avaliação dos testes intermédios entretanto realizados, ao invés de comparar este exame com o desejável. Assim, valorizei os progressos feitos, apesar das falhas existentes. Mas serei naturalmente mais exigente no próximo ano, exactamente como faço com os meus alunos.
    Obrigado pela sua visita e pelo seu comentário. É pena sermos tão poucos a exercer o espírito crítico que apregoamos nas aulas com os nossos alunos :(

    Boas férias, se for o caso.

    Carlos Café

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