domingo, 17 de novembro de 2013

O problema do livre arbítrio (capítulo 1): Quando a culpa é das companhias...


CAPÍTULO 1

Quando a culpa é das companhias...

(Determinismo e livre arbítrio: apresentação do problema)


Comecemos com uma notícia de jornal.  A edição do «Correio da Manhã» de 7/9/2008 incluía uma reportagem sobre o abandono e o insucesso escolar. Chamou-me particularmente a atenção o depoimento de dois jovens, o João e a Sofia, que foram entrevistados pelo mesmo motivo: tinham chumbado várias vezes. Vamos ouvi-los.
O João, que tinha na altura 22 anos, provém de uma família rica. Já chumbou quatro vezes. Quando lhe perguntaram por que motivos respondeu assim:
«Os meus problemas começaram quando fui expulso do colégio. Tive que sair porque não podiam ter alguém como eu a perturbar as aulas».
O João padece de uma doença de foro neurológico chamada Síndrome de Tourette. A doença manifesta-se através de tiques motores e vocais involuntários como, por exemplo, fazer movimentos bruscos e gritar. (Já voltaremos a esta estranha doença.)
Agora a Sofia. Tinha na altura 17 anos, nascida numa família pobre, e já chumbou três vezes. Assume que andou «na balda» durante uns tempos e aponta como uma das causas as «más companhias».
Em resumo, ambos justificam a sua conduta com factores exteriores à sua vontade: João com a doença, Sofia com as influências sociais.
Há uma pergunta em que de certeza já estás a pensar: será que  faz sentido responsabilizar o João e a Sofia pelo seu fracasso? À primeira vista, os casos parecem completamente diferentes. Mas serão realmente?
Comecemos pelo caso do João e por alguns esclarecimentos prévios sobre esta doença neurológica com nome tão estranho. Como acontece muitas vezes na ciência, herda-se o nome do cientista responsável pela descoberta. Neste caso, Gilles de la Tourette, o médico francês que foi o autor do primeiro artigo científico sobre esta doença, publicado em 1885. Há muita informação disponível na net. Foi lá que descobri para ti esta descrição:
           
Síndrome de Gilles de La Tourette

Também conhecida por doença dos tiques é uma patologia rara de origem  neurológica que se manifesta por tiques motores incontroláveis e inadequados ou vocalizações repetidas e fora do contexto. É um distúrbio raro de origem neurológica cujas formas mais graves são altamente limitativas, uma vez que os doentes não conseguem controlar os movimentos  involuntários.
Esta situação acaba por afectar, gradualmente, as relações interpessoais, escolares e profissionais. Afecta sobretudo indivíduos do sexo masculino e manifesta-se de forma única em cada um (não há dois doentes com os mesmos tiques). Não se conhecem as causas mas alguns especialistas acreditam que tem origem  num desequilíbrio químico a nível do cérebro, resultado de anomalias nos neurotransmissores. Suspeita-se de uma anomalia no metabolismo de um  neurotransmissor específico, a dopamina.
Não existe cura para esta doença. No entanto, através de uma medicação cuidada e rigorosa é possível atenuar os sintomas de forma a permitir uma integração social adequada.
Os tiques podem ser palavrões ditos repetidamente em voz alta fora do contexto, movimentos bruscos e estranhos, caretas, movimentos espásmicos, colocar os dedos na garganta, fazer sons de animais, entre outros gestos.

Fonte: http://saude.sapo.pt/saude-medicina/medicacao-doencas/doencas/sindromeydeygillesydeylaytourette.html

E, já agora, este vídeo retirado de um programa de TV inglês sobre o dia a dia de John, um jovem do secundário com a síndrome:


            Voltemos ao João. Percebe-se agora melhor o que queria ele dizer com “tive que sair porque não podiam ter alguém como eu a perturbar as aulas». É difícil imaginar um aula normal com alguém que se mexe, remexe, se levanta e se põe a andar pelo meio da sala; ou que lança gritos e, quem sabe?, palavrões no meio da aula.
            Quero agora que te coloques no papel do João. Quando ele se levanta bruscamente, ou se põe a gritar na aula, de quem é a responsabilidade, afinal? É da doença dele ou é... dele?
Pelo que acabámos de ler, parece difícil atribuir-lhe responsabilidades. E isto porque os atos não são uma escolha sua. Decerto preferiria não ter aquela doença que tantos embaraços lhe causa. Ora, se alguém faz qualquer coisa sem querer, a responsabilidade por esse ato não é sua, certo? Portanto, a conclusão a retirar é a de que o João não é responsável por esses comportamentos estranhos que, ditados pela sua doença, estiveram na base da sua expulsão da escola.
  Chegou agora a vez da Sofia. No seu caso não se trata de uma doença neurológica. Ela justifica o seu insucesso escolar com as companhias, ou seja, atribui as responsabilidades aos amigos com quem se dava na altura. Ora, se compararmos com o caso do João, vemos logo que há aqui uma diferença fundamental: enquanto o João não poderia evitar ter a doença, a Sofia poderia ter evitado andar com aquelas companhias. Todos nós conhecemos na escola, e fora dela também, pessoas com quem nos identificámos mais ou nos identificámos menos. Acabámos por nos associar a determinados grupos e não a outros por razões várias: porque temos a mesma idade, ou os mesmos gostos musicais, ou porque praticamos o mesmo desporto, ou porque somos vizinhos, por exemplo. Se nos perguntassem por que motivos temos aqueles amigos e não outros responderíamos que queremos ter esses amigos e não outros. Ou seja, atribuímos as nossas amizades a escolhas realizadas livremente.
Não é isso que faz a Sofia. Ela fala das companhias como se não tivesse podido separar-se delas. Atribui-lhes as responsabilidades por ter andado “na balda”, como ela diz. Mas terá sido mesmo assim? Não foi ela quem escolheu aquelas companhias e não outras? Com tanta gente que há na escola, foi logo dar-se com aquelas pessoas? Por quê? E, se se deu conta de que não eram boas influências, por que não se separou delas a tempo de não chumbar? Alguém a obrigou a ficar no grupo?
Estes dois casos servem na perfeição para exemplificar o problema filosófico do livre arbítrio. Livre arbítrio é ter capacidade de escolha, é podermos escolher entre vários caminhos possíveis que a vida nos oferece. Só faz sentido falar em livre arbítrio quando se pode escolher de entre várias opções, portanto. O passo seguinte é tentar mostrar-te por que é isto um problema filosófico. Mas para isso é necessário apresentar-te o conceito “rival” do de livre arbítrio, sem o qual nada disto faria sentido. Refiro-me ao conceito de “determinismo”.
O determinismo é uma concepção acerca do funcionamento do mundo segundo a qual tudo nele acontece devido a causas anteriores. Vistos desta perspectiva, os acontecimentos do mundo são uma sequência de causas que geram efeitos, que por sua vez são a causa por detrás de novos efeitos, e assim sucessivamente. Na filosofia chamamos a isso “cadeias causais”.
No filme O estranho caso de Benjamin Button, de David Fincher, há uma sequência em que Benjamin (Brad Pitt) reconstitui o dramático atropelamento que fará com que Daisy (Cate Blanchett) fique impossibilitada de dançar para o resto da sua vida. Ilustrada por uma hábil sequência de imagens, a voz de Benjamin apresenta um após outro os vários pequenos acontecimentos que, por se terem desenrolado desse e não de outro modo, se conjugaram entre si de tal maneira que acabam por ter como trágico desenlace o atropelamento. Convido-te a ver uma versão dobrada em português do Brasil  (se dominas bem o inglês podes ver aqui):


A cadeia causal do filme é uma bela sequência de cinema, mas a realidade é composta de sucessivas cadeias causais, segundo o determinismo. Podemos ilustrar esta ideia com aquelas performances com peças de dominó que às vezes passam na televisão. Como esta, por exemplo, encontrada no youtube:


Que tal, gostaste? As peças vão caindo uma a uma, sendo que a peça anterior é a causa da queda da peça seguinte, que por sua vez, ao cair, é a causa da queda da peça de dominó seguinte, e assim sucessivamente. Encarados desta forma, todos os acontecimentos do mundo obedecem a uma espécie de “efeito dominó”. Mas tu não te estás a ver como uma simples peça de um jogo, pois não?
Consideremos agora uma ficção digna dos filmes. Se, por hipótese, alguém pudesse ter acesso à “base de dados” do mundo, todos os acontecimentos passados, por mais intrigantes que parecessem, poderiam ser explicados racionalmente através das cadeias causais. Isto quer dizer que se alguém tivesse poderes para regressar ao passado, poderia assistir “ao vivo” à sucessão de causas e efeitos que fizeram com que as coisas tivessem acontecido daquele modo e não de outro. O que nos leva para esta hipótese curiosa: e se alguém no passado alterasse uma das peças do dominó? As coisas aconteceriam do mesmo modo ou tudo seria diferente? Serão os acontecimentos passados das nossas vidas apenas “peças de dominó” integradas em cadeias causais que não controlamos? Teremos realmente a possibilidade de fazer as coisas acontecerem de acordo com as nossas escolhas ou isso não passa de uma ilusão? 
  Há um filme que costumo passar aos meus alunos em que estas e outras questões filosóficas surgem com grande relevo. Vou falar-te dele. Mas, para já, dá uma vista de olhos ao trailer:


            Reconheces o actor? É Ashton Kutcher, interpretando Evan Treborn, no filme “Efeito Borboleta” (The Butterfly Effect), realizado por Eric Bress e J. Mackye Gruber em 2004.
Evan Treborn é um rapaz que desde os 7 anos se apercebeu que não conseguia recordar certos momentos da sua vida. O seu psicólogo aconselha-o a escrever um diário para evitar que esses esquecimentos continuem. É isso que ele faz: a partir daí começa a registar num diário tudo o que acontece no seu dia a dia. Anos mais tarde, é esse diário que leva Evan a descobrir que tem um dom muito especial. Queres saber que dom é esse, certo?
Já na universidade, Evan relê o seu diário por acaso e, de repente, dá por si no passado, revivendo um dos momentos de que ele não era capaz de se recordar. Intrigado sobre a experiência que viveu, decide procurar a sua amiga de infância Kayleigh (o seu primeiro amor...) deixando-a perturbada por remexer em histórias passadas. No dia seguinte Evan recebe uma chamada de Tommy, irmão de Kayleigh, relatando o seu suicídio. É este o acontecimento que provoca o desenrolar do filme e que leva Evan a uma sucessão de regressos ao passado para tentar alterar o destino do seu grande amor. Porém, Evan vai aprendendo, à sua própria custa, que alterar um fato do passado mexe com todo o futuro.
            O filme chama-se “Efeito Borboleta”, mas o que nele vai acontecendo é mais parecido com um alucinante e imprevisível efeito dominó. Seremos nós apenas peças de um “jogo” cujas regras nos escapam? Se tudo no universo é determinado, acontecerá o mesmo com as ações humanas? Existe determinismo ou livre arbítrio? Os filósofos que defendem uma coisa ou outra são designados de incompatibilistas. Por quê? Porque defendem que a existência de determinismo não é compatível com a existência de livre arbítrio: ou existe um ou existe o outro. Mas há quem defenda que há um meio termo: existe determinismo e também existe livre arbítrio. Esta tentativa de solucionar o problema é compatibilista, porque se considera que a existência de determinismo e a existência de livre arbítrio são, afinal, compatíveis. E já que estamos a falar de jogos, é caso para dizer que com isto ficam os “dados lançados”.
            Interessado em acompanhar este “enigma”? Não percas o próximo capítulo, que tem este título sugestivo...

Tens a certeza de que não és uma personagem do Sims?

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