quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Conhecimento ou ilusão? Diálogo sobre o percurso filosófico de Descartes (Parte 2: do cogito a Deus)




Conhecimento ou ilusão?
Diálogo sobre o percurso filosófico de Descartes

Segunda etapa: do cogito a Deus


RENATO: Muito bem, é altura de percorrermos o trajeto filosófico que conduz Descartes do cogito a Deus. Vou apresentar-te dois dos argumentos que Descartes utiliza para justificar a crença de que Deus existe. Ambos se centram na ideia de perfeição, embora de modo distinto, como irás reparar. Analisemos, para já, o primeiro argumento. Descartes começa por constatar que tem inúmeras dúvidas. Isso é um facto. Ora, se tenho dúvidas, pensa ele, então sou um ser imperfeito. Mas depois pergunta-se: como é que eu sei que sou um ser imperfeito? Para o saber tenho de ter em mim a ideia de perfeição, caso contrário não me seria possível aperceber-me de que sou imperfeito. Não será?

FRANCISCO: Parece-me que sim. Imagina que estou a tomar a bica. Porque é que sei, por exemplo, que o café é doce? Porque sei o que é o amargo. E o mesmo se aplica ao quente e ao frio, ao bonito e ao feio, etc.

RENATO: Exatamente. Continuemos, então. Ora, se tenho em mim a ideia de perfeição, a pergunta que se impõe é óbvia: de onde veio tal ideia?

FRANCISCO: Que hipóteses coloca Descartes?

RENATO: Estas duas, antes de mais: obtivemos esta ideia através da experiência dos sentidos ou criámo-la nós próprios. A primeira hipótese exclui-se logo (recordo-te que nesta altura nem sequer sabemos se o mundo existe, quanto mais recebermos dele a ideia de perfeição!...). Além do mais, já vimos que os sentidos não são uma fonte de conhecimento totalmente credível.

FRANCISCO: Vamos então para a segunda hipótese…

RENATO: … que é a seguinte: terá sido ele próprio, René Descartes, a criar a ideia de perfeição? A resposta é não, porque se ele é imperfeito, não pode ter criado algo perfeito. Portanto, se a ideia de perfeição não nos foi fornecida a partir do exterior e se também não fomos nós próprios a criá-la, resta-nos apenas uma hipótese: a ideia de perfeição foi criado por um ser perfeito, que a colocou no nosso espírito. Logo, o ser perfeito existe. Esse ser perfeito só pode ser Deus.

FRANCISCO: Está-me a parecer que há aí qualquer coisa que “não bate certo”. Mas apresenta lá o segundo argumento, que eu depois já te digo o que penso sobre isso.

RENATO: Está bem. O segundo argumento também tem a ver com a ideia de perfeição, mas já não com a sua causa. Agora, Descartes pede que nos concentremos na própria ideia de perfeição. Ele crê que pela simples análise desta ideia se pode inferir que existe um ser perfeito.

FRANCISCO: Espera lá! Esse argumento não tinha já sido utilizado por Santo Anselmo?

RENATO: É verdade, sim senhor. Descartes retoma-o e dá-lhe uma formulação matemática. Bom, o argumento é este. Ao analisarmos a ideia de perfeição, constatamos que, por definição, à perfeição não pode faltar seja o que for. De facto, algo perfeito a que faltasse alguma coisa não seria já perfeito, não é verdade? Descartes faz uma analogia matemática, indo buscar a ideia de triângulo. Um triângulo tem, por definição, três lados e três ângulos (é impossível conceber um triângulo de outra forma). Ele acredita que o mesmo se passa com a ideia de perfeição: por definição, a algo perfeito tem necessariamente de não faltar rigorosamente nada, sob pena de cairmos em contradição.

FRANCISCO: Estou a acompanhar. Continua.

RENATO: Ora, se à ideia de perfeição não pode faltar nada, como admitir que lhe falte uma propriedade fundamental, que é a existência? Portanto, acrescenta Descartes, podemos concluir que, existindo a ideia de perfeição, existe também um ser perfeito. Esse ser perfeito é Deus.

FRANCISCO: Não fiquei lá muito convencido, e daqui a pouco já te digo porquê. Agora quero que me respondas a outra pergunta: porque é que para Descartes é tão importante tentar provar que Deus existe? Não tinha ele já refutado o cepticismo através do cogito?

RENATO: É verdade que tinha refutado o cepticismo ao provar que existe pelo menos uma crença básica evidente que se fundamenta a si mesma. Mas, como tu próprio assinalaste e muito bem, o cogito de Descartes é sólido mas solitário.

FRANCISCO: Quer dizer que Deus é necessário para que ele possa sair do seu «rochedo solitário»?

RENATO: Nem mais. O raciocínio de Descartes é este: se Deus existe, o Génio Maligno não existe. Posso agora, portanto, crer que não é ilusão que tenho um corpo, que existem outros «eus», que o Mundo existe… E assim se chega ao fim da busca filosófica de Descartes: começa com a dúvida metódica, através da qual descobre o cogito; do cogito parte para Deus, que lhe permite garantir a existência do Mundo. Como vês, o penso, logo existo é a primeira verdade, mas o fundamento último de tudo é Deus. O próprio Descartes o reconhece, quando afirma:
           
«Mas desde que reconheci que existe um Deus, ao mesmo tempo compreendi também que tudo o resto depende dele e que ele não é enganador, e daí concluí que tudo aquilo que concebo clara e distintamente é necessariamente verdadeiro (…). E assim vejo perfeitamente que a certeza e a verdade de toda a ciência dependem unicamente do conhecimento do Deus verdadeiro, a tal ponto que, antes de o conhecer, eu não poderia saber nada, de modo perfeito, de qualquer outra coisa. Porém, agora podem ser perfeitamente conhecidas e certas, para mim, inúmeras coisas, quer do próprio Deus, e das coisas intelectuais, quer também de toda a natureza corpórea (…)»

FRANCISCO: Muito bem, acho que percebi. Agora quero apresentar as minhas objecções.

RENATO: Venham elas.

FRANCISCO: A primeira objecção diz respeito ao primeiro argumento a favor da existência de Deus. A dada altura, Descartes afirma que um ser imperfeito não pode criar algo perfeito. Ora, eu penso que esta premissa é disputável. Há inúmeros contra exemplos que apontam no sentido contrário, ou seja, em que alguém se supera a si próprio e produz algo mais perfeito do que tudo o que desse género havia sido feito até aí. É claro que não pretendo dizer com isto que é possível a um ser imperfeito produzir algo perfeito (seja lá isso o que for…), mas parece irrefutável que é possível a um ser imperfeito dar origem a algo mais perfeito do que ele próprio. O evolucionismo de Darwin, por exemplo, defende isso mesmo: as espécies (o Homem incluído) evoluíram adaptando-se e superando-se a si mesmas.

RENATO: Essa ideia seria completamente impensável para um homem do séc. XVII, por mais culto que fosse…

FRANCISCO: Reconheço isso. Passemos então ao segundo argumento, que é precisamente o que me suscita mais reservas. Em primeiro lugar: do facto de se ter uma ideia de algo perfeito não se segue necessariamente que exista um ser com essas características.

RENATO: Como assim?

FRANCISCO: Por exemplo, eu posso imaginar a namorada perfeita, enunciando pormenorizadamente a extensa lista de qualidades que fazem com que seja perfeita; no entanto, daí não se segue que tal namorada ideal exista!

RENATO: Lamentavelmente…

FRANCISCO: Mas este não é o único problema. Mesmo que admitamos o argumento, deparamos com novas dificuldades quando Descartes começa a deduzir consequências da suposta existência de Deus.

RENATO: Que dificuldades são essas?

FRANCISCO: Tudo reside no facto de Descartes pressupor que, quando falamos de Deus, estamos a referir-nos necessariamente ao Deus teísta ou seja, um Deus que é Único, Criador de tudo quanto existe, Omnisciente, Omnipotente e Sumamente Bom.

RENATO: Por quê? Qual é o problema?

FRANCISCO: O problema é que a afirmação «Se Deus existe, o Génio Maligno não existe» só é verdadeira se por «Deus» entendermos o Deus do Teísmo. Se a premissa não for essa, não se segue que o Génio Maligno não exista, o que vem enfraquecer significativamente os argumentos de Descartes.

RENATO: Dá-me exemplos claros.

FRANCISCO: Imagina que, afinal, Deus não é um Pai austero, mas sim uma Criança que não tem nenhum plano traçado para os seres que ele próprio criou. Imagina agora que esse Deus Criança, porque precisa de alguém para brincar, aceita jogar um jogo com o Demónio (ou Génio Maligno), cujo objectivo é ver quem conquista mais almas entre os humanos.  

RENATO: Que hipótese estranha! Onde é que foste buscar tal ideia?

FRANCISCO: Esta hipótese «estranha», como tu dizes, é a hipótese a partir da qual é construído o argumento do filme Constantine. Mas há outras possibilidades, talvez ainda mais «estranhas». Podes imaginar que Deus é uma Criança e que, como qualquer criança, nem sequer sabe o que é o Bem e o Mal, e se entretém a atirar pedras aos burros, a roubar fruta dos pomares e que foge a chorar com medo dos cães. Podes ainda imaginar que Deus não é um Pai mas sim uma Mãe; e que, como qualquer mãe, gosta de todos os seus filhos, mesmo daqueles que são maus e têm prazer em fazer mal aos outros, como seria o caso do Demónio…

RENATO: O que é que queres provar com isso, afinal?

FRANCISCO: Quero apenas mostrar-te que, em todos estes casos, do facto de Deus existir não se segue que o Génio Maligno não exista. E que essas hipóteses talvez nem sejam tão bizarras como a do Génio Maligno, que o próprio Descartes leva tão a sério.

RENATO: Estou a ver que não ficaste muito entusiasmado com a solução cartesiana para o problema da possibilidade do conhecimento…

FRANCISCO: Não é bem assim. Penso que Descartes é brilhante até chegar ao cogito, mas a sua argumentação é muito menos consistente a partir daí. Parece-me que a tentativa de demonstrar a existência de Deus é o «calcanhar de Aquiles» da filosofia cartesiana. E isso leva-me a perguntar-te uma coisa: não houve outras formas de tentar superar o Cepticismo? Ou outros filósofos que tivessem abordagens distintas, sem que para isso tivessem de duvidar de tudo o que provém dos sentidos?

RENATO: Claro que sim. David Hume, por exemplo, refletiu brilhantemente sobre estes assuntos mas nunca deixou de levar a sério as percepções, antes pelo contrário.

FRANCISCO: A sério? Conta lá, então.

RENATO: Fica para depois, se não te importas. Há um ruído irritante que me está a incomodar, parece um despertador de telemóvel ou coisa do géne...

≈≈≈≈≈

            — Acorda, filho! Olha que vais chegar atrasado outra vez! E hoje vais ter teste de Filosofia logo ao primeiro tempo, não é verdade?
            Renato estremeceu, em pânico. Teste de Filosofia?! Tinha-se esquecido completamente! Levantou-se de imediato e ligou o duche. Quando ia a entrar ouviu uma voz que dizia:

≈≈≈≈≈

            — Eu não te digo outra vez para vires para a mesa!... — gritou o pai do João Pedro, visivelmente irritado— Não te disse já n vezes que o carbonara gratinado tem de ser servido na hora?
            — Mas pai, estamos quase no fim daquele filme de Filosofia que me deste. Queres acreditar que o totó da personagem principal se esqueceu de que ia ter teste de Filosofia? Que ganda cromo! — tentou disfarçar o João Pedro, embora soubesse que não ia dar em nada. O pai era implacável com a hora de ir para a mesa.
            — Veem depois —foi a resposta que ele já esperava, vinda da cozinha, por entre o aroma a queijo gratinado e acordes da Tosca, de Puccini— O Diogo janta connosco?
            O amigo disse que não, que a mãe já estava à espera dele. O João Pedro acompanhou- o à porta.
            — Não achaste o filme um bocado esquisito? — perguntou o Diogo.
            — Um pouco, mas o pior foi esta cena no final, a lembrar-nos de que temos realmente teste de Filosofia para a semana. E logo esta matéria, que não tem ponta por onde se lhe pegue! Que sentido é que tem pormo-nos a duvidar de que o Mundo existe e coisas do género? —continuou ele, já diante do elevador— Quer dizer, eu agora olhava para aqui e pensava assim: e se isto não for a porta amarela do elevador? E se for… deixa cá ver… uma porta vermelha de um farol, por exemplo?
            Enquanto dizia isto, divertido, o amigo do João Pedro deu-se conta de que o elevador chegara finalmente. Despediu-se e abriu a porta.

            E foi então que aquilo aconteceu.

Sem comentários:

Enviar um comentário