segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Conhecimento ou ilusão? Diálogo sobre o percurso filosófico de Descartes (Parte 1: da dúvida ao cogito)


Conhecimento ou ilusão?
Diálogo sobre o percurso filosófico de Descartes

Primeira etapa: da dúvida ao cogito



Alguma vez tiveste a sensação de não saberes se estás acordado ou a sonhar?

Tenho algumas memórias da minha vida. Nenhuma delas aconteceu.

Neo: Neste momento estamos dentro de um programa de computador?
Morpheus: É assim tão difícil de acreditar?

Neo: Isto não é verdadeiro?
Morpheus: O que é «verdadeiro»? Como é que defines «verdadeiro»? Se estás a falar sobre o que podes sentir, cheirar, provar e ver, o «verdadeiro» são sinais eléctricos interpretados pelo teu cérebro.

Frases retiradas do filme Matrix


FRANCISCO: Muito bem, parece que chegámos a acordo quanto à definição de conhecimento. Sendo assim, a partir de agora sempre que utilizarmos a palavra «conhecimento» neste diálogo estaremos a referir-nos a…

RENATO: … uma crença verdadeira e justificada. Crença, porque não existe conhecimento se o próprio sujeito não tiver essa crença; verdadeira, porque a crença tem de se adequar à realidade, caso contrário todas as crenças seriam conhecimento, como por exemplo a crença de que é o Pai Natal quem oferece os presentes; e finalmente, a crença, para além de verdadeira, deve também ser convenientemente justificada, já que tem de haver boas razões (justificações) para se crer que uma crença é verdadeira.

FRANCISCO: Voltemos então ao assunto que estávamos a discutir. O que eu penso é o seguinte: se nos pusermos a pensar com atenção, apercebemo-nos de que há inúmeras razões para duvidarmos seriamente da possibilidade de obtermos conhecimentos inequivocamente verdadeiros, completamente imunes à dúvida.

RENATO: Que razões são essas?

FRANCISCO: Em primeiro lugar, temos os limites naturais do próprio ser humano: nem as nossas capacidades são perfeitas, nem nós somos eternos. Em segundo lugar, as evidentes diferenças existentes entre nós (a época histórica, a classe social, as vivências e a personalidade, por exemplo), tornam impossível a obtenção de um ponto de vista que possa ser considerado verdadeiro para todos os homens de todas as épocas — passadas, presente e futuras. Mais tarde ou mais cedo, seja qual for o assunto, haverá sempre divergência irreconciliável de opiniões, mesmo entre os especialistas; logo, nenhuma delas está plenamente justificada. Além do mais, tens de reconhecer a existência de ilusões perceptivas que nos induzem em erro. Ora, é sempre possível que as crenças baseadas na percepção sejam falsas; logo, as crenças baseadas na percepção não estão justificadas.

RENATO: Não estás a ser convincente…

FRANCISCO: Vou apresentar-te o argumento principal. Acompanha o meu raciocínio. Como é que nós justificamos habitualmente as nossas crenças? Através de outras crenças, não é? Por exemplo: se eu te perguntar se neste preciso momento tu estás acordado ou a dormir, o que é que me respondes?

RENATO: Que estou acordado, claro!

FRANCISCO: E como é que justificas essa tua crença de que estás acordado?

RENATO: É fácil: porque estou aqui a conversar contigo!

FRANCISCO: Ou seja: justificas a tua crença de que estás acordado com outra crença, a de que é verdade que estás a conversar comigo. Em que te baseias para teres assim tanta certeza?

RENATO: Olha que pergunta! Porque estou a ver-te e a ouvir-te…

FRANCISCO: E como é que sabes que a tua crença de que estás a ver-me e a ouvir-me é uma crença verdadeira? Como é que a justificas? E se os teus olhos e os teus ouvidos te estiverem a enganar?

RENATO: Bom, por essa ordem de ideias nenhuma crença estaria justificada: teríamos sempre de a justificar com uma crença anterior, que por sua vez exigiria uma outra que a justificasse, e assim sucessivamente…

FRANCISCO: Mas é exatamente isso que eu penso. Uma vez que as crenças se justificam com outras crenças, o processo de justificação dá origem a uma regressão infinita, que nunca para. Concluindo: para haver conhecimento, as nossas crenças têm de estar justificadas; ora, as nossas crenças nunca estão plenamente justificadas; portanto, não há conhecimento. Tens alguma objecção a apresentar?

RENATO: Por acaso até tenho. Se pensas realmente assim, porque é que te comportas como se houvessem crenças realmente verdadeiras e justificadas? Por exemplo: hoje de manhã, quando atravessaste a ponte para vir ter a minha casa, não paraste a mota com receio de que a ponte fosse uma ilusão, pois não? Um céptico consequente talvez tivesse feito isso.

FRANCISCO: O.K., admito que é um comportamento inconsequente. E admito também que talvez seja impossível ser-se céptico permanentemente, a todas as horas do dia e em todas as circunstâncias. Isso paralisaria toda a acção, de facto. Mas atenção: posso ter de admitir que não sou consequente, mas isso não significa que o que afirmo não seja verdadeiro.

RENATO: Tens razão, a objecção apenas põe em causa quem tem a crença, não a própria crença. Mas isso significa que estás a cair em contradição: afirmas que não há crenças verdadeiras e justificadas, mas defendes que essa tua crença é ela própria verdadeira e justificada! Como é que queres ser levado a sério se o que afirmas é auto-refutativo?

FRANCISCO: … E qual é o problema? Para um céptico, as coisas são colocadas assim: se conseguir provar que tem razão, muito bem, se não conseguir, muito bem à mesma... Não é afinal essa a tese principal dos cépticos, a de que se não pode justificar convenientemente crença alguma?

RENATO: Voltemos ao argumento da regressão infinita. Eu julgo saber como se refuta de forma categórica a tua tese.

FRANCISCO: Sou todo ouvidos…

RENATO: Comecemos com uma distinção que tu não fizeste. Admitamos que há dois tipos de crenças: as crenças básicas (que justificam outras crenças sem elas próprias precisarem de ser justificadas) e as crenças não básicas (que são as que necessitam de ser justificadas pelas crenças básicas). Utilizando uma metáfora, é como se o conhecimento humano fosse uma espécie de edifício, em que as crenças básicas constituem as fundações ou alicerces.

FRANCISCO: Entendo a metáfora, mas não sei se concordo com essa distinção. Afinal, que crenças básicas são essas? Não te referes às nossas primeiras crenças baseadas nos sentidos, pois não? Não estou a ver como é que as crenças empíricas podem ser tão evidentes a ponto de não necessitarem elas próprias de ser justificadas. Se os sentidos nos enganam tantas vezes, não devemos fazer das crenças empíricas as nossas crenças básicas onde todas as outras se iriam apoiar.

RENATO: Compreendo a tua dúvida. René Descartes percebeu isso e tentou procurar as crenças básicas não na experiência, mas na razão. A ideia era encontrar uma crença tão clara e evidente que não necessitasse ela própria de justificação. Em suma: uma verdade realmente indiscutível.

FRANCISCO: Agora deixaste-me curioso… E estou disposto a abandonar o meu cepticismo se me provares que essa crença básica indiscutível existe mesmo!

RENATO: Aceito o desafio! Então é assim: se se provar que existe, pelo menos, uma crença que seja absolutamente indiscutível, então isso significa que o cepticismo está errado. De acordo?

FRANCISCO: Estou à espera…

RENATO: O método de busca utilizado por Descartes ficou conhecido por dúvida metódica e consiste no seguinte: partir do princípio de que é falsa toda a crença em relação à qual possamos ter a mais pequena dúvida.

FRANCISCO: E como é que esse método funciona?

RENATO: Eu explico. Imagina uma crença qualquer, por exemplo, a crença de que estou acordado e não a dormir. Para saber se essa crença é indubitável temos de fazer a pergunta: há alguma possibilidade dessa crença ser falsa?

FRANCISCO: Claro que há! Quantas vezes temos nós sonhos que parecem mesmo reais…

RENATO: Então, se há a mínima possibilidade da crença ser falsa isso quer dizer que não é uma crença básica indiscutível; portanto, não pode ser utilizada como fundamento sólido do conhecimento.

FRANCISCO: Mas daí não se segue que, pelo facto de não ser indiscutível, essa crença seja necessariamente falsa…

RENATO: Exatamente! Descartes não afirma que uma crença de que se possa duvidar seja necessariamente falsa; o que ele diz é que ela, se suscita dúvidas, não pode ser a tal crença básica que ele tanto procura.

FRANCISCO: Estou a perceber. É como quando alguém nos mentiu. Não significa que de futuro nos minta sempre, mas como já o fez antes não podemos ter a certeza absoluta de que fala verdade. Mas não será impossível avaliar todas as nossas crenças uma a uma? É que isso nunca mais tem fim!...

RENATO: Bem visto! Descartes apercebeu-se disso e, para simplificar as coisas, adoptou esta regra: quando avaliamos uma crença e descobrimos que ela não é indubitável, devemos rejeitá-la não só a ela mas também a todas as que são do mesmo género e possuem os mesmos fundamentos.

FRANCISCO: Dá-me um exemplo.

RENATO: Comecemos pelas crenças a posteriori, que são aquelas que justificamos através da experiência sensível, com base nos dados dos nossos cinco sentidos. Não é verdade que muitas vezes temos ilusões de óptica? Por exemplo, parecer-nos que são as árvores que se movem quando vamos de comboio? Ou, nos dias de Verão, a estrada parecer estar a tremer e a deitar fumo?

FRANCISCO: Estou a acompanhar. Continua.

RENATO: Descartes raciocina deste modo: essas crenças são indubitáveis? Não. E são crenças de que tipo? São crenças a posteriori, justificadas pelos dados dos sentidos. Então, aplicando a tal regra de que estamos a falar, conclui o seguinte: devemos rejeitar não só estas crenças em particular, mas também todas as crenças do mesmo género, ou seja, todas as crenças obtidas através dos sentidos.

FRANCISCO: Quer dizer: não lhe interessa para já saber se estamos realmente enganados, mas sim se existe essa possibilidade. Se existir, esse tipo de crenças é provisoriamente posta de lado…

RENATO: … uma vez que não são o que ele procura, isto é, a tal crença básica indubitável. E esta regra vai ser aplicada a todos os tipos de crenças. A seguir, Descartes vai ver se podemos duvidar das crenças a priori, que são aquelas que são justificadas racionalmente e não já através da experiência.

FRANCISCO: É o caso das chamadas “verdades da matemática”, por exemplo «2+2= 4». E o que é que ele acha? Não me digas que põe isso em causa! É que se põe, é caso para dizer que Descartes está a ser mais céptico que os próprios cépticos!...

RENATO: Bem podes dizê-lo! Mas olha que foi exatamente isso que ele fez: imaginou uma hipótese que talvez nem o mais radical dos cépticos teria tido a ousadia de formular.

FRANCISCO: E que hipótese tão extraordinária foi essa?

RENATO: A hipótese do Génio Maligno, que é a seguinte: e se existir uma espécie de deus perverso e maldoso, que se entretém a manipular os nossos pensamentos, criando-nos permanentemente a ilusão de que as nossas crenças são verdadeiras quando não passam de uma espécie de “realidade virtual”?

FRANCISCO: Já percebi! Mais ou menos como no filme Matrix: as pessoas estão convencidas de que tudo o que sentem e pensam é real quando, afinal, é apenas um programa de computador que estimula os seus cérebros de forma a criar-lhes essa “vida” imaginária. Mas continua: que conclui Descartes com essa hipótese do Génio Maligno?

RENATO: Conclui que, apesar de parecer absurda, a possibilidade de estarmos a ser permanentemente enganados existe, pelo que também não é nas crenças a priori que podemos encontrar a tal crença básica que refute o argumento da regressão infinita utilizado pelos cépticos.

FRANCISCO: Bom, se nem na Matemática tal crença inabalável existe, não sei onde possa existir…

RENATO: Mas olha que Descartes parece tê-la encontrado. E o texto em que ele julga descobri-la é tão famoso que merece ser citado:

            «… resolvi supor que tudo o que até então encontrara acolhimento no meu espírito não era mais verdadeiro que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo em seguida, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma cousa. E notando que esta verdade — eu penso, logo existo [em latim: cogito, ergo sum] —, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos cépticos seriam impotentes para a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava.»

FRANCISCO: Ah, o célebre «cogito, ergo sum»!

RENATO: Nem mais: o célebre penso, logo existo. O raciocínio é este: posso duvidar de tudo, mas enquanto duvido, penso; portanto, se penso, existo. E aqui tens uma verdade absolutamente acima de qualquer dúvida! Ou, como também disse Descartes, assim se consegue «fugir das areias movediças» do cepticismo e «encontrar a rocha» firme e segura.

FRANCISCO: Encontrar a rocha no meio das areias movediças! Que engraçado! Mas ouve: e a hipótese do Génio Maligno? Será que o cogito lhe resiste?

RENATO: Perfeitamente! Pensa bem: mesmo que o Génio Maligno me esteja a enganar quando me dou conta de que se penso, existo, isso só confirma a minha crença, uma vez que, se estou a ser enganado, então existo!

FRANCISCO: Realmente, tenho de reconhecer que esta intuição parece ser inabalável! Vistas assim as coisas, o argumento céptico da regressão infinita cai por terra: encontramos finalmente uma crença básica que se justifica a si mesma. Qual é o próximo passo?

RENATO: Descartes pensa que, uma vez encontrada a primeira crença indubitável (que irá ser a base de outras que nela se apoiarão), encontrámos também o critério que nos vai permitir de futuro distinguir as ideias falsas das verdadeiras.

FRANCISCO: Que critério é esse?

RENATO: O que é que faz do penso, logo existo uma crença evidente? Responde Descartes: o facto de ser clara e distinta. Será então esse o critério a utilizar a partir de agora: aceitar como verdadeiras apenas as crenças que sejam claras e distintas, ou seja, evidentes.

FRANCISCO: Estou curioso para saber como é que Descartes vai partir desta primeira verdade para chegar a outras. É que vou confessar-te uma coisa: o cogito é uma verdade indiscutível, mas a mim parece-me uma verdade um tanto solitária… Vendo bem, a única certeza com que Descartes fica é a de que ele existe e apenas como ser pensante! E eu pergunto: e os outros «eus», existem ou não? E o corpo, o que é afinal (se é que é alguma coisa)? E o Mundo à nossa volta, ao que parece repleto de coisas materiais que não são pensamento: existe realmente ou continua a ser uma ilusão?

RENATO: As tuas observações fazem todo o sentido. Mas Descartes também se apercebeu desse perigo. Foi, aliás, isso mesmo que o levou a buscar um fundamento absolutamente inatacável que lhe permitisse justificar essas outras crenças de que falaste, ou seja, a existência do corpo, de outros «eus», do Mundo…

FRANCISCO: Sou todo ouvidos…

(Fim da primeira etapa)

A seguir:

Segunda etapa: do cogito a Deus


Sem comentários:

Enviar um comentário