Pode um livro ser um
auxiliar poderoso nas aulas de filosofia? Pode, tal como o cinema, a arte ou as
notícias, por exemplo.
Vem isto a propósito de um
livrinho que gosto de levar para as minhas aulas quando discutimos o tema da
natureza dos juízos morais. Trata-se de “Crimes Exemplares”, de Max Aub,
editado em Portugal pela Antígona.
Como faço habitualmente,
apresentei o problema de maneira pouco convencional, na expectativa de captar a
atenção dos alunos e os levar a aperceberem-se das perplexidades que nos surgem
quando pensamos criticamente nestes assuntos. A estratégia foi ler alguns dos
micro-contos de que o livro é feito, nos quais homicidas condenados apresentam
os motivos que os levaram a cometer os seus crimes. Aqui ficam dois. O caso
estranho deste barbeiro, por exemplo:
“Sou barbeiro. É uma coisa que pode acontecer a qualquer pessoa. Quero
dizer que até esse dia fui um bom barbeiro. Cada qual tem as suas manias, eu
não gosto de borbulhas.
Aconteceu assim: comecei a barbeá-lo calmamente, ensaboei-o com
habilidade, afiei a navalha no braço da cadeira e suavizei-a na palma da mão.
Sou um bom barbeiro! Nunca cortei ninguém e ainda por cima esse tipo não tinha
uma barba muito espessa. Mas tinha borbulhas. Devo reconhecer que nas suas
borbulhas não havia nada de especial, no entanto, incomodavam-me, enervavam-me,
revolviam-me as tripas.
A primeira, contornei-a bem, sem grande dificuldade, mas a segunda
começou a sangrar. Então, não sei o que me deu, acho que é uma coisa muito
natural, aprofundei a ferida e depois, sem poder deixar de o fazer, com um só
golpe, cortei-lhe a cabeça.”
Ou este trágico desenlace
que começa com uma inocente colherzinha:
“Começou a mexer o café com leite com a colherzinha. O líquido quase
transbordava da chávena empurrado pelo movimento do utensílio de alumínio (o
recipiente era vulgar, o sítio ordinário e a colher estava arredondada pelo
uso). Ouvia-se o barulho do metal contra o vidro. Tim, tim, tim, tim. E o café
com leite girava, girava com uma cova no meio. Um maelstrom. E
eu encontrava-me sentado mesmo à frente. O café estava à pinha. O homem
continuava a mexer, a mexer, imóvel, e sorria ao olhar-me. Senti uma coisa
subir por mim acima. Fitei-o de tal maneira que se viu na obrigação de se
explicar:
- O açúcar ainda não está derretido.
Para mo provar, bateu com a colher várias vezes no fundo do copo.
Recomeçou a mexer metodicamente a beberagem, com uma energia redobrada. Voltas
e mais voltas, sem parar, eternamente. Voltas e mais voltas e mais voltas. E
continuava a olhar para mim, sorrindo. Então puxei da pistola e disparei.”
Podemos encontrar este e
outros oito contos adaptados para o cinema na curta-metragem “Menos 9”
(Portugal, 1999), de Rita Nunes.
Tudo isto vem a propósito
do subjectivismo moral. Uma teoria que defende que os juízos morais dependem da
perspectiva de cada sujeito (são subjectivos), ou seja, que em Ética não há
verdades universais, cada pessoa tem
a sua «verdade». O argumento principal desta teoria pode ser sintetizado assim:
Um juízo moral exprime os
sentimentos e convicções da pessoa sobre o assunto em causa; as pessoas são
diferentes umas das outras; logo, os juízos morais são subjectivos.
À primeira vista, e como
aspecto positivo, o subjectivismo moral parece promover a tolerância. De facto, se o que é moralmente
«certo» ou «errado» depende dos sentimentos de cada pessoa e se os sentimentos
de uma não são melhores nem piores que os de outra, conclui-se que devemos ser
tolerantes para com os juízos morais dos outros.
Contudo, são decerto em
maior número as dificuldades que nos coloca quando imaginamos as consequências
da sua aplicação na vida em sociedade. Vejamos algumas objecções possíveis.
Se o subjectivismo está
certo, qualquer juízo moral é verdadeiro. De facto, se os juízos morais
dependem apenas da perspectiva de cada sujeito, então nenhum juízo moral pode
ser considerado errado, por mais repugnante que seja, uma vez que para quem o
defende ele é verdadeiro. Vista assim, a Ética é completamente arbitrária.
Em segundo lugar, a
educação moral, tal como a entendemos, deixa de fazer sentido. Educar é
transmitir determinados valores considerados «bons» em detrimento de outros
considerados «maus». Ora, se cada um ajuíza à sua maneira os factos morais,
para quê educar? Quando muito, um subjectivista consequente poderia dar este
conselho: «ajuíza de acordo com os teus sentimentos e terás sempre razão».
Finalmente, o debate de
ideias sobre assuntos morais tornar-se-ia desnecessário. Se toda a gente tem a
sua «verdade», de que serve discutir problemas e confrontar argumentos? Numa
sociedade organizada de acordo com o subjectivismo moral, a disciplina de
Filosofia decerto não existiria…
São estas e outras questões
filosóficas com elas relacionadas que andaremos, eu e os meus alunos, a
discutir nas próximas aulas. Pelo menos enquanto não acabarem com a disciplina
no secundário...
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