sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Bibliofilmoteca n.º 3: A Morte de um Apicultor, de Lars Gustafsson

(A bibliofilmoteca é o baú de onde irei retirando, de vez em quando, os filmes e livros de que na altura me apetece falar.)



Título:
A Morte de um Apicultor
Autor:  Lars Gustafsson

Edição portuguesa: Edições Asa, Porto, 1992 (1ª ed.)
Tradução: Ana Diniz     Nº de páginas: 174

É um dos meus livros preferidos, que revisito de tempos a tempos para ler umas páginas mais ou menos ao acaso. O excerto que publico neste post é um excelente exemplo da escrita subtil e despojada deste escritor. E também da sua capacidade de suscitar complexas questões filosóficas a partir de histórias invulgarmente imaginativas. A probabilidade do autor me processar pela divulgação que aqui faço do seu texto é praticamente nula, uma vez que é apoiante do Partido Pirata sueco, que defende, entre outras coisas, o fim do direito à propriedade intelectual, nomeadamente direitos de autor. A escolha de uma das suites para violoncelo de Bach deve-se ao facto de serem da preferência do escritor, como revela no perfil do seu blogue pessoal aqui.


Um mundo onde reina a verdade

No planeta número 3 do Sistema 13, em Aldebaran, existe uma civilização que se relaciona directamente com a realidade, sem símbolos intermediários.

A ideia de que, por exemplo, uma figura desenhada num papel representa alguma coisa mais do que ela própria é totalmente alheia aos miriápodes possuidores de uma força extraordinária que constituem o estádio civilizacional mais elevado do planeta.

A sua força invulgar pouco lhes adianta. Uma vez que o único símbolo de uma coisa que eles conhecem é a própria coisa, têm de transportar constantemente uma enorme quantidade de objectos. Neste planeta a expressão «uma retórica vigorosa» tem um significado real.

Por exemplo, quando se quer dizer «uma pedra aquecida pelo sol», só há uma maneira. É pôr uma pedra aquecida ao sol na mão, ou melhor, na pata daquele com quem se está a falar.

Se se quiser dizer «uma pedra gigantesca no alto de uma montanha», só há uma maneira de proferir essa frase. É carregar com uma pedra gigantesca para o cimo de uma montanha.

Produzir um poema, nestas circunstâncias, é uma prova de força que permanece, em toda a sua heróica evidência, por várias gerações.

A maior parte dos sonetos que esta civilização produziu parecem-se de certo modo com Stonehenge: formidáveis grupos de pedras alinhadas por heróicos antepassados, arquejando e gemendo, com as veias salientes, segundo um esquema ancestral.

Nesta civilização a mentira é, evidentemente, uma total impossibilidade. Se se quer dizer «amo-te» a alguém, só há uma maneira, que é fazê-lo. Se se quer dizer «não te amo», também só há uma maneira, que consiste em evitar fazê-lo. Se se for capaz.

Num mundo em que o símbolo é sempre coincidente com a própria coisa e esta não pode ser substituída por pequenos sons ridículos ou por fieiras de sinaizinhos bizarros desenhados num papel, sinais esses que nada têm a ver seja com o que for para além de uma frágil e transitória convenção, é claro que a verdade e o sentido, a mentira e o absurdo, serão coincidentes.

O único substituto da mentira que existe num mundo como este é, evidentemente, falar de forma tão incompreensível, tão absurda, que ninguém entenda.

A conversação normal, a conversa trivial, neste planeta, consiste em os seus habitantes tirarem de umas bolsas de couro que costumam trazer consigo uma quantidade de objectos muito pequenos, contas de vidro, pedrinhas de diversas cores, pauzinhos muito bem polidos — e trocarem-nos animadamente entre si.

O preço da verdade é elevado.

De todas as civilizações superiores da região dos velhos sóis, no centro da Via Láctea, não há nenhuma que viva tão isolada como esta.

A astronomia, naturalmente, é impossível. Não podemos falar de galáxias se for necessário transportá-las de um lado para o outro para nos referirmos a elas. Aliás, o próprio conceito de «planeta» é impensável.

Estes seres vivem numa planície avermelhada, delimitada por altas montanhas.
E nem para essa planície que, teoricamente, é o mesmo que «o mundo», eles têm um conceito.

(Caderno azul IV: 4)

Lars Gustafsson, in A Morte de um Apicultor



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