(A bibliofilmoteca é o baú de onde irei retirando, de vez em quando, os filmes e livros de que na altura me apetece falar.)
Título:
A Morte de um Apicultor
Autor: Lars Gustafsson
Edição portuguesa: Edições Asa, Porto, 1992 (1ª ed.)
Tradução: Ana Diniz Nº de páginas: 174
É um dos meus livros preferidos, que revisito de tempos a tempos para ler umas páginas mais ou menos ao acaso. O excerto que publico neste post é um excelente exemplo da escrita subtil e despojada deste escritor. E também da sua capacidade de suscitar complexas questões filosóficas a partir de histórias invulgarmente imaginativas. A probabilidade do autor me processar pela divulgação que aqui faço do seu texto é praticamente nula, uma vez que é apoiante do Partido Pirata sueco, que defende, entre outras coisas, o fim do direito à propriedade intelectual, nomeadamente direitos de autor. A escolha de uma das suites para violoncelo de Bach deve-se ao facto de serem da preferência do escritor, como revela no perfil do seu blogue pessoal aqui.
Um mundo onde reina a verdade
No planeta número 3 do Sistema 13, em Aldebaran,
existe uma civilização que se relaciona directamente com a realidade, sem
símbolos intermediários.
A ideia de que, por exemplo, uma figura
desenhada num papel representa alguma coisa mais do que ela própria é
totalmente alheia aos miriápodes possuidores de uma força extraordinária que
constituem o estádio civilizacional mais elevado do planeta.
A sua força invulgar pouco lhes adianta. Uma vez
que o único símbolo de uma coisa que eles conhecem é a própria coisa, têm de
transportar constantemente uma enorme quantidade de objectos. Neste planeta a
expressão «uma retórica vigorosa» tem um significado real.
Por exemplo, quando se quer dizer «uma pedra
aquecida pelo sol», só há uma maneira. É pôr uma pedra aquecida ao sol na mão,
ou melhor, na pata daquele com quem se está a falar.
Se se quiser dizer «uma pedra gigantesca no alto
de uma montanha», só há uma maneira de proferir essa frase. É carregar com uma
pedra gigantesca para o cimo de uma montanha.
Produzir um poema, nestas circunstâncias, é uma
prova de força que permanece, em toda a sua heróica evidência, por várias
gerações.
A maior parte dos sonetos que esta civilização
produziu parecem-se de certo modo com Stonehenge: formidáveis grupos de pedras
alinhadas por heróicos antepassados, arquejando e gemendo, com as veias
salientes, segundo um esquema ancestral.
Nesta civilização a mentira é, evidentemente, uma
total impossibilidade. Se se quer dizer «amo-te» a alguém, só há uma maneira,
que é fazê-lo. Se se quer dizer «não te amo», também só há uma maneira, que
consiste em evitar fazê-lo. Se se for capaz.
Num mundo em que o símbolo é sempre coincidente
com a própria coisa e esta não pode ser substituída por pequenos sons ridículos
ou por fieiras de sinaizinhos bizarros desenhados num papel, sinais esses que
nada têm a ver seja com o que for para além de uma frágil e transitória
convenção, é claro que a verdade e o sentido, a mentira e o absurdo, serão
coincidentes.
O único substituto da mentira que existe num
mundo como este é, evidentemente, falar de forma tão incompreensível, tão
absurda, que ninguém entenda.
A conversação normal, a conversa trivial, neste
planeta, consiste em os seus habitantes tirarem de umas bolsas de couro que
costumam trazer consigo uma quantidade de objectos muito pequenos, contas de
vidro, pedrinhas de diversas cores, pauzinhos muito bem polidos — e
trocarem-nos animadamente entre si.
O preço da verdade é elevado.
De todas as civilizações superiores da região dos
velhos sóis, no centro da Via Láctea, não há nenhuma que viva tão isolada como
esta.
A astronomia, naturalmente, é impossível. Não
podemos falar de galáxias se for necessário transportá-las de um lado para o
outro para nos referirmos a elas. Aliás, o próprio conceito de «planeta» é
impensável.
Estes seres vivem numa planície avermelhada,
delimitada por altas montanhas.
E nem para essa planície que, teoricamente, é o
mesmo que «o mundo», eles têm um conceito.
(Caderno azul IV: 4)
Lars Gustafsson, in A Morte de um Apicultor
Sem comentários:
Enviar um comentário