Se
podíamos viver sem livre arbítrio? Podíamos, mas não era a mesma coisa...
(Libertismo: tese, argumentos e principais
objeções)
Situação
1. Imagina que chegas à livraria para comprar um manual de filosofia e
descobres que o livro está rigorosamente em branco. Folheias folha após folha e
não há uma única palavra escrita. Estranho, não é verdade? Decerto voltarias à
livraria para devolver o manual, alegando que tinha havido um erro de
impressão. Entregavam-te outro, ficava o caso resolvido e voltavas para casa.
Tudo normal, portanto.
Situação
2. Imagina que voltas um dia mais tarde à livraria para comprares um daqueles
cadernos para servir de diário. Chegas a casa e descobres que o caderno já está
completamente escrito. Folheias folha após folha e não há uma única página em
branco. Estranho, não é verdade? Decerto voltarias à livraria para devolver o
caderno, alegando que já estava usado. Entregavam-te outro, ficava o caso
resolvido e voltavas para casa. Tudo normal, portanto.
Tudo
normal? Normal por quê? Vamos falar disso.
É suposto um manual
escolar já estar escrito, certo? Ele existe para ajudar os alunos a aprender e
os professores a ensinar. Já o caso do diário é diferente. Um diário tem de
estar em branco porque é suposto ir sendo preenchido à medida que o seu autor
vai vivendo o dia a dia. E as folhas têm necessariamente de estar em branco
porque, em rigor, ninguém sabe o que escrever no diário antes de ter vivido. Pode até dizer-se que cada dia da nossa vida é
como se fosse uma página do nosso diário de vida.
Vais ter oportunidade de
discutir esta ideia mais à frente, num diálogo que escrevi sobre este problema
do livre arbítrio. Que diálogo é esse? - perguntas tu. Trata-se de uma
entrevista imaginária a Jean-Paul Sartre, um célebre filósofo francês do séc.
XX. Nela, a jovem estudante de Filosofia que faz de entrevistadora afirma a
dada altura:
“A nossa vida é um livro em branco que nós próprios vamos escrevendo
e de que somos os únicos autores”.
Nesta
frase está presente uma teoria filosófica muito interessante sobre o problema
do livre arbítrio. É habitualmente designada por libertismo. Vou apresentar-te
agora as ideias principais desta teoria. Se me quiseres ouvir (se quiseres,
sim, porque os libertistas acham que és tu quem decide se ficas ou não aqui a
ouvir-me...). Se ficares, explicar-te-ei a tese do libertismo e os argumentos
principais que a sustentam.
Lembras-te
decerto do determinismo radical, a teoria de que falámos no capítulo anterior.
Os deterministas radicais defendem que tudo o que acontece no universo é
determinado por leis físicas, incluindo aqui as ações humanas. Por isso
concluem que tudo é determinado e que não existe livre arbítrio. Pois bem, o
libertismo defende que apenas o
universo físico é determinista. A vontade e a consciência humanas não são
determinadas pelas leis físicas do universo. Jean-Paul Sartre expressa essa
ideia assim:
Não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Estamos sós e
sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser
livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque
uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer.
Jean-Paul Sartre, in O Existencialismo é um
Humanismo
Como
podes verificar, o libertismo é também uma teoria incompatibilista, mas num
sentido oposto ao do determinismo radical. Ambos defendem que a existência em
simultâneo de determinismo e livre arbítrio são incompatíveis. A diferença está
em que o libertismo, aqui exemplificado por Sartre, considera que existe livre
arbítrio e, portanto, não existe determinismo. Vamos agora ver por quê.
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir |
São
dois os argumentos principais do libertismo. O primeiro apela a uma experiência
intuitiva que todos nós temos: a experiência de termos de escolher. Em termos
mais rigorosamente filosóficos, este argumento é habitualmente designado por
argumento da experiência imediata da vontade. Isto quer dizer que todos nós
temos a experiência de sermos confrontados com várias hipóteses e que, em
função da nossa vontade, escolhemos livremente. Quando
decidimos fazer a acção X e não Y, vivemos uma experiência de escolha. Esta
experiência de escolha é algo que acontece de facto, não é um sonho ou uma
ilusão. Ora, livre arbítrio é ter possibilidade de escolha, certo? Logo, existe
livre arbítrio.
O segundo argumento que escolhi
para te apresentar aqui pode ser encontrado no diálogo imaginário com Sartre.
Designa-se habitualmente por argumento da criação artística, uma vez que faz
uma analogia entre a liberdade do artista ao criar a sua obra de arte e a
liberdade do ser humano ao decidir o que fazer da sua vida. Comecemos por aqui:
aceitamos pacificamente que o artista é livre de criar o que quiser. Um
exemplo: perante a tela em branco, é o pintor quem decide livremente o que
pintar - seres ou objectos reais (pintura figurativa) ou formas abstractas,
utilizar cores quentes ou frias, etc.. Portanto, as escolhas do artista são
incondicionadas e são fruto da sua própria vontade. O mesmo acontece com a vida
dos seres humanos. De onde se conclui que a vontade humana é livre. Mas será
esta uma boa teoria?
O seu ponto forte parece ser o
facto de todos nós estarmos familiarizados com a ideia de «escolha». A
sociedade (através de normas como «recompensa», «castigo», «responsabilidade
civil») e a própria linguagem pressupõem-no. Neste sentido, o libertismo é
consistente com a crença de que somos livres e realizamos acções pelas quais
somos responsáveis.
No entanto, como sempre acontece
na filosofia, também há objeções que se podem colocar a esta teoria. Vou
apresentar-te duas dessas objeções.
Mente e cérebro serão a mesma
coisa? Segundo o libertismo, existe uma diferença fundamental entre o cérebro e
a mente: o cérebro (entidade física), obedece às leis deterministas do mundo
físico, enquanto que a mente não é determinada causalmente. Ou seja: defende
que uma coisa não física (a mente) interfere com os fenómenos do mundo físico
(as acções). E daí, qual é o problema? – ouço-te a perguntar. Repara bem: ao
atribuir-se um estatuto especial à mente humana (o lugar onde a vontade livre
toma as decisões), ela surge como uma espécie de «fantasma». Tal como os
fantasmas, seres não físicos e não palpáveis, de quem se diz que podem abrir
portas e arrastar correntes, também a mente (não física) conseguiria interferir
no mundo físico sem, no entanto, ter uma estrutura física. Estranho, no mínimo.
Tanto ou mais estranho que a própria ideia de fantasmas...
Finalmente, parece que o estatuto
especial que o libertismo atribui aos seres humanos (os únicos a disporem de
livre arbítrio, ao contrário de todos
os outros seres existentes no universo) conduz inevitavelmente a esta pergunta:
por quê um poder especial para os seres racionais? O que existe de tão especial
na racionalidade que justifique estar
acima das leis da natureza? Tal como José Mourinho no futebol, será o ser
humano o special one da natureza?
Para finalizar, convido-te a ler a entrevista imaginária a
Jean-Paul Sartre aqui.
Diverte-te!
Olá! Muito bom o texto gostaria de pedir permissão em usar uma frase sua num dos meus textos, naturalmente sendo honesto vou credita-lo.
ResponderEliminarDisponha, Gerson. E obrigado pelo seu comentário.
ResponderEliminarAbraço