Foto by Maria Miguel Café |
Ontem fui assistir a um
concerto especial: Steve Hackett Genesis
Extended 2014. Uma revisitação da banda mítica inglesa pela mão do seu
virtuoso guitarrista e compositor. O concerto foi magnífico. Não era fácil
recriar em palco a atmosfera musical dos Genesis,
principalmente no que diz respeito à “substituição” de Peter Gabriel. Muito
menos agradar a uma plateia conhecedora ao pormenor dos discos em vinil. Mas
tudo isso foi conseguido – e muito mais. Dancing with the Moonlit Knight e Supper's Ready foram perfeitos, The Musical Box perfeitamente sublime.
Tal como há uns anos realizei o sonho de ver ao vivo Paco de Lucía junto do meu
filho João Pedro, desta vez acompanhou-me a minha filha Maria Miguel. (Falta-me,
talvez, Van Morrison, mas sei que nessa noite teremos de estar lá todos...)
Depois do concerto fomos beber um copo, conversar e, desse modo,
libertar as palavras que precisavam de ser ditas depois de uma noite assim. Uma
coisa puxa a outra, e acabámos a comparar o modo como os adolescentes de então
e os de hoje vivem a música. E eu, que antevira já neste concerto um pretexto
que me levaria inevitavelmente a regressar às minha próprias memórias, achei
por bem partilhar convosco este texto.
Mais do que um elogio de uma banda histórica, é um regresso a mim, à minha
história como pessoa.
Falo de memórias da
adolescência. Ávido, inquieto, muitas vezes perdido. Quando a música que ouvia
dizia mais sobre mim que tudo o mais. Quando ouvir música era, para um rebelde
adolescente orgulhosamente ateu, um ritual espiritual por excelência, uma
vivência mística, uma experiência iniciática. Quando caminhar na rua (e não
havia phones...) correspondia a uma marcha triunfal ao som da música que ecoava
delirantemente dentro de mim, como se um mar de indiferentes se abrisse à minha
passagem, celebrando sem o saberem a minha secreta superioridade musical.
Sim, tudo isto fazia todo o
sentido. Um sentido original e talvez único, raramente partilhado (tipo um
tesouro, dir-se-ia hoje), que funcionava como um escudo invisível que me
protegia generosamente da esmagadora maioria da “gente” que à minha volta se
arrastava. Principalmente na escola, esse lugar insuportavelmente formatado,
onde exigia que me deixassem ser eu próprio sem que, no entanto, soubesse ainda
muito bem o que era ou o que queria ser.
Mas que interessava isso,
se o que mais importava era saber que tinha deixado já a inércia da mediania e
me aventurava numa descoberta sem fim à vista, como se uma força interior que
desconhecia (mas reconhecia como minha) me impelisse a mergulhar no
desconhecido simultaneamente belo e assustador?
Como muitas vezes acontece,
apenas mais tarde descobri as palavras certas para o que me esmagava na altura.
Com Cioran, percebi que o que nascia então em mim era a “tentação de existir”
e, portanto, a recusa visceral de estar condenado a ser apenas mais uma coisa
que existe.
Vendo bem, tudo contribuía
para isso. Os discos em vinil (que, religiosamente, se levavam para a escola),
a dificuldade em os encomendar (muitas vezes só em Viseu ou Coimbra), o preço e
as negociações incontornáveis a fazer com os pais, o pavor de que os discos se
riscassem. Havia em tudo isto algo que nos distinguia e que, por estranho que
possa parecer, parecia autorizar que nos víssemos como especiais.
Falo agora de mim. Não eram
as notas ou os elogios dos professores que me animavam. Gostava disso, claro,
principalmente da ideia entretanto difundida de que viria a ser “um escritor”.
Mas ali, naquela altura, eu, puto adolescente, não queria saber disso. Sentia-me
membro de um reservadíssimo clube de adolescentes especiais, tragicamente
incompreendidos pela multidão que, alegre e ruidosamente à nossa volta, exibia
sem sequer o saber uma leveza assustadoramente feliz, incompreensível e quase obscena.
Distinguíamo-nos por diversas
coisas, mas principalmente pela disponibilidade para ouvir música. Ouvir, sem nada
mais. Suspender por horas o mundo e os outros e o que quer que fosse
(colocando-nos a nós próprios entre parêntesis). Momentos únicos: sentir que
tudo estava finalmente perfeito, pegar no braço do gira-discos e, com o rigor
meticuloso de um ato cirúrgico, colocar a agulha no início do disco e voltar
rapidamente ao local prévia e cuidadosamente selecionado para uma audição que
era uma deliciosa entrega. Total, brutal, quase escandalosamente amorosa.
Não sei bem como explicar,
por isso vai mesmo assim: naquela altura ouvíamos álbuns, não curtíamos músicas
avulsas. Como qualquer ritual respeitável, um álbum tinha uma sequência
concebida pelos seus criadores e assim deveria ser. E se, por hipótese, um tema
do álbum nos parecia menos bem conseguido, partíamos do princípio de que a
falha era nossa, não dele. Este exercício de paciência e humildade era
indispensável para que evoluíssemos musicalmente. A maioria não superava esta
prova de fogo e, fosse pelo que fosse, ficava por um patamar mais elementar.
Sabíamos intuitivamente quais as músicas ou os álbuns que funcionavam como
indicadores de nível de apreciação musical. Era fácil gostar de I Know What I Like, por exemplo, mas
quantos reconheceriam a complexidade sublime de Supper's Ready? É
também por isso que, para um apaixonado pelos Genesis, a banda acabou realmente com a saída de Peter Gabriel. É
absolutamente irrelevante que Trick Of
The Tail até não seja um mau álbum. A verdade é que, apesar de Peter
Gabriel não ser o Messias, Phil Collins será sempre visto como o
Usurpador. Tratou-se de um caso evidente
de ruptura afectiva, que só pode ser
escrita assim mesmo, em total desrespeito por esta modernidade insuportável
(inevitável?) do acordo ortográfico. Como não preferir a autenticidade original
que criou novos mundos em nós, contra os mapas previsivelmente repetidos sobre
papel vegetal? Como não perpetuar o movimento inicial, o trilho sublimemente
apenas esboçado, o gesto inaugural?
Acredito que as nossa vidas
têm uma banda sonora. A da minha adolescência está repleta de músicas dos Genesis, como estaria provavelmente de
temas dos Joy Division ou Echo & The Bunnymen se tivesse
nascido uns anos mais tarde. Mas isto das bandas sonoras das nossa vidas é um
pouco como os paradigmas de Thomas Kuhn: de tão intrinsecamente diferentes, são
incontornavelmente incomensuráveis. Como decidir entre os Doors, Beatles ou Joy Division, por exemplo? Razão tinha
Vergílio Ferreira quando escreveu que, afinal, não envelhecemos, limitamo-nos a
mudar de constelação...
Era mais ou menos isto que
queria dizer. E não, não é um ajuste de contas. É apenas uma história que um
dia teria de contar. Justamente por uma questão de justiça...
Play me my song,
here it comes again.
Play me my song,
here it comes again.
Just a little bit,
just a little bit more
time,
time left to live out
my life.
Play me my song,
here it comes again.
Play me my song,
here it comes again.
(Foi praticamente assim)
Oh, como me identifiquei com este post. Vou levar, dado que tem opção de partilha…obrigada!
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