CAPÍTULO 1
Quando a culpa é das companhias...
(Determinismo e livre arbítrio: apresentação do problema)
Comecemos com uma notícia de jornal. A edição do «Correio da Manhã» de 7/9/2008
incluía uma reportagem sobre o abandono e o insucesso escolar. Chamou-me
particularmente a atenção o depoimento de dois jovens, o João e a Sofia, que
foram entrevistados pelo mesmo motivo: tinham chumbado várias vezes. Vamos
ouvi-los.
O João, que tinha na altura 22 anos, provém de uma
família rica. Já chumbou quatro vezes. Quando lhe perguntaram por que motivos
respondeu assim:
«Os meus
problemas começaram quando fui expulso do colégio. Tive que sair porque não
podiam ter alguém como eu a perturbar as aulas».
O João padece de uma doença de foro neurológico
chamada Síndrome de Tourette. A doença manifesta-se através de tiques motores e
vocais involuntários como, por exemplo, fazer movimentos bruscos e gritar. (Já
voltaremos a esta estranha doença.)
Agora a Sofia. Tinha na altura 17 anos, nascida
numa família pobre, e já chumbou três vezes. Assume que andou «na balda» durante uns tempos e aponta
como uma das causas as «más companhias».
Em resumo, ambos justificam a sua conduta com
factores exteriores à sua vontade: João com a doença, Sofia com as influências
sociais.
Há uma pergunta em que de certeza já estás a
pensar: será que faz sentido
responsabilizar o João e a Sofia pelo seu fracasso? À primeira vista, os casos
parecem completamente diferentes. Mas serão realmente?
Comecemos pelo caso do João e por alguns esclarecimentos
prévios sobre esta doença neurológica com nome tão estranho. Como acontece
muitas vezes na ciência, herda-se o nome do cientista responsável pela
descoberta. Neste caso, Gilles de la Tourette, o médico francês que foi o autor
do primeiro artigo científico sobre esta doença, publicado em 1885. Há muita
informação disponível na net. Foi lá que descobri para ti esta descrição:
Síndrome de Gilles de La Tourette
Também conhecida por doença dos tiques é uma
patologia rara de origem neurológica que se manifesta por tiques motores
incontroláveis e inadequados ou vocalizações repetidas e fora do contexto. É um
distúrbio raro de origem neurológica cujas formas mais graves são altamente
limitativas, uma vez que os doentes não conseguem controlar os movimentos
involuntários.
Esta situação acaba por afectar,
gradualmente, as relações interpessoais, escolares e profissionais. Afecta
sobretudo indivíduos do sexo masculino e manifesta-se de forma única em cada um
(não há dois doentes com os mesmos tiques). Não se conhecem as causas mas
alguns especialistas acreditam que tem origem num desequilíbrio químico a
nível do cérebro, resultado de anomalias nos neurotransmissores. Suspeita-se de
uma anomalia no metabolismo de um neurotransmissor específico, a
dopamina.
Não existe cura para esta doença. No entanto,
através de uma medicação cuidada e rigorosa é possível atenuar os sintomas de
forma a permitir uma integração social adequada.
Os tiques podem ser palavrões ditos repetidamente em
voz alta fora do contexto, movimentos bruscos e estranhos, caretas, movimentos
espásmicos, colocar os dedos na garganta, fazer sons de animais, entre outros
gestos.
Fonte:
http://saude.sapo.pt/saude-medicina/medicacao-doencas/doencas/sindromeydeygillesydeylaytourette.html
E, já agora, este vídeo retirado de um programa de
TV inglês sobre o dia a dia de John, um jovem do secundário com a síndrome:
Voltemos ao João.
Percebe-se agora melhor o que queria ele dizer com “tive que sair porque não podiam ter alguém como eu a perturbar as aulas».
É difícil imaginar um aula normal com alguém que se mexe, remexe, se levanta e
se põe a andar pelo meio da sala; ou que lança gritos e, quem sabe?, palavrões
no meio da aula.
Quero agora que te
coloques no papel do João. Quando ele se levanta bruscamente, ou se põe a
gritar na aula, de quem é a responsabilidade, afinal? É da doença dele ou é...
dele?
Pelo que acabámos de ler, parece difícil
atribuir-lhe responsabilidades. E isto porque os atos não são uma escolha sua.
Decerto preferiria não ter aquela doença que tantos embaraços lhe causa. Ora,
se alguém faz qualquer coisa sem querer, a responsabilidade por esse ato não é
sua, certo? Portanto, a conclusão a retirar é a de que o João não é responsável
por esses comportamentos estranhos que, ditados pela sua doença, estiveram na
base da sua expulsão da escola.
Chegou
agora a vez da Sofia. No seu caso não se trata de uma doença neurológica. Ela
justifica o seu insucesso escolar com as companhias, ou seja, atribui as
responsabilidades aos amigos com quem se dava na altura. Ora, se compararmos
com o caso do João, vemos logo que há aqui uma diferença fundamental: enquanto
o João não poderia evitar ter a doença, a Sofia poderia ter evitado andar com
aquelas companhias. Todos nós conhecemos na escola, e fora dela também, pessoas
com quem nos identificámos mais ou nos identificámos menos. Acabámos por nos
associar a determinados grupos e não a outros por razões várias: porque temos a
mesma idade, ou os mesmos gostos musicais, ou porque praticamos o mesmo desporto,
ou porque somos vizinhos, por exemplo. Se nos perguntassem por que motivos
temos aqueles amigos e não outros responderíamos que queremos ter esses amigos
e não outros. Ou seja, atribuímos as nossas amizades a escolhas realizadas
livremente.
Não é isso que faz a Sofia. Ela fala das
companhias como se não tivesse podido separar-se delas. Atribui-lhes as
responsabilidades por ter andado “na balda”, como ela diz. Mas terá sido mesmo
assim? Não foi ela quem escolheu aquelas companhias e não outras? Com tanta
gente que há na escola, foi logo dar-se com aquelas pessoas? Por quê? E, se se
deu conta de que não eram boas influências, por que não se separou delas a
tempo de não chumbar? Alguém a obrigou a ficar no grupo?
Estes dois casos servem na perfeição para exemplificar
o problema filosófico do livre arbítrio. Livre arbítrio é ter capacidade de
escolha, é podermos escolher entre vários caminhos possíveis que a vida nos
oferece. Só faz sentido falar em livre arbítrio quando se pode escolher de
entre várias opções, portanto. O passo seguinte é tentar mostrar-te por que é
isto um problema filosófico. Mas para isso é necessário apresentar-te o
conceito “rival” do de livre arbítrio, sem o qual nada disto faria sentido.
Refiro-me ao conceito de “determinismo”.
O determinismo é uma concepção acerca do
funcionamento do mundo segundo a qual tudo nele acontece devido a causas
anteriores. Vistos desta perspectiva, os acontecimentos do mundo são uma
sequência de causas que geram efeitos, que por sua vez são a causa por detrás
de novos efeitos, e assim sucessivamente. Na filosofia chamamos a isso “cadeias
causais”.
No filme O
estranho caso de Benjamin Button, de David Fincher, há uma sequência em que
Benjamin (Brad Pitt) reconstitui o dramático atropelamento que fará com que Daisy
(Cate Blanchett) fique impossibilitada de dançar para o resto da sua vida.
Ilustrada por uma hábil sequência de imagens, a voz de Benjamin apresenta um
após outro os vários pequenos acontecimentos que, por se terem desenrolado
desse e não de outro modo, se conjugaram entre si de tal maneira que acabam por
ter como trágico desenlace o atropelamento. Convido-te a ver uma versão dobrada
em português do Brasil (se dominas bem o
inglês podes ver aqui):
A cadeia causal do filme é uma bela sequência de
cinema, mas a realidade é composta de sucessivas cadeias causais, segundo o
determinismo. Podemos ilustrar esta ideia com aquelas performances com peças de
dominó que às vezes passam na televisão. Como esta, por exemplo, encontrada no youtube:
Que tal, gostaste? As peças vão caindo uma a uma,
sendo que a peça anterior é a causa da queda da peça seguinte, que por sua vez,
ao cair, é a causa da queda da peça de dominó seguinte, e assim sucessivamente.
Encarados desta forma, todos os acontecimentos do mundo obedecem a uma espécie
de “efeito dominó”. Mas tu não te estás a ver como uma simples peça de um jogo,
pois não?
Consideremos agora uma ficção digna dos filmes.
Se, por hipótese, alguém pudesse ter acesso à “base de dados” do mundo, todos
os acontecimentos passados, por mais intrigantes que parecessem, poderiam ser
explicados racionalmente através das cadeias causais. Isto quer dizer que se
alguém tivesse poderes para regressar ao passado, poderia assistir “ao vivo” à
sucessão de causas e efeitos que fizeram com que as coisas tivessem acontecido
daquele modo e não de outro. O que nos leva para esta hipótese curiosa: e se
alguém no passado alterasse uma das peças do dominó? As coisas aconteceriam do
mesmo modo ou tudo seria diferente? Serão os acontecimentos passados das nossas
vidas apenas “peças de dominó” integradas em cadeias causais que não
controlamos? Teremos realmente a possibilidade de fazer as coisas acontecerem
de acordo com as nossas escolhas ou isso não passa de uma ilusão?
Há um
filme que costumo passar aos meus alunos em que estas e outras questões
filosóficas surgem com grande relevo. Vou falar-te dele. Mas, para já, dá uma
vista de olhos ao trailer:
Reconheces o actor?
É Ashton
Kutcher, interpretando Evan Treborn, no filme “Efeito Borboleta” (The Butterfly Effect),
realizado por Eric Bress e J. Mackye Gruber em 2004.
Evan
Treborn é um rapaz que desde os 7 anos se apercebeu que não conseguia recordar
certos momentos da sua vida. O seu psicólogo aconselha-o a escrever um diário
para evitar que esses esquecimentos continuem. É isso que ele faz: a partir daí
começa a registar num diário tudo o que acontece no seu dia a dia. Anos mais
tarde, é esse diário que leva Evan a descobrir que tem um dom muito especial.
Queres saber que dom é esse, certo?
Já na
universidade, Evan relê o seu diário por acaso e, de repente, dá por si no
passado, revivendo um dos momentos de que ele não era capaz de se recordar.
Intrigado sobre a experiência que viveu, decide procurar a sua amiga de
infância Kayleigh (o seu primeiro amor...) deixando-a perturbada por remexer em
histórias passadas. No dia seguinte Evan recebe uma chamada de Tommy, irmão de
Kayleigh, relatando o seu suicídio. É este o acontecimento que provoca o
desenrolar do filme e que leva Evan a uma sucessão de regressos ao passado para
tentar alterar o destino do seu grande amor. Porém, Evan vai aprendendo, à sua
própria custa, que alterar um fato do passado mexe com todo o futuro.
O filme chama-se “Efeito Borboleta”,
mas o que nele vai acontecendo é mais parecido com um alucinante e imprevisível
efeito dominó. Seremos nós apenas peças de um “jogo” cujas regras nos escapam?
Se tudo no universo é determinado, acontecerá o mesmo com as ações humanas?
Existe determinismo ou livre arbítrio? Os filósofos que defendem uma coisa ou outra são designados de
incompatibilistas. Por quê? Porque defendem que a existência de determinismo
não é compatível com a existência de livre arbítrio: ou existe um ou existe o
outro. Mas há quem defenda que há um meio termo: existe determinismo e também existe livre arbítrio. Esta
tentativa de solucionar o problema é compatibilista, porque se considera que a
existência de determinismo e a existência de livre arbítrio são, afinal,
compatíveis. E já que estamos a falar de jogos, é caso para dizer que com isto
ficam os “dados lançados”.
Interessado em acompanhar este
“enigma”? Não percas o próximo capítulo, que tem este título sugestivo...
Tens a certeza de que não és uma personagem do Sims?
Sem comentários:
Enviar um comentário