Almada Negreiros, Maternidade |
Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que
ainda não viajei! Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor
de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de
viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um
por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me
ao teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu
viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas
palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero
ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio
que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão
verdade!
José de Almada Negreiros, in A invenção do Dia Claro
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