Este é um blogue sobre cinema e filosofia (na sala de aula e não só). Mas também sobre música, arte, literatura, entre outras coisas que enriquecem a minha vida. Neste sentido, é também um blogue pessoal.
No dia da última aula, cedo o palco a Bertrand Russell. E aos Pearl Jam.
“Além do trabalho normal,
(...) os jovens deverão ser encorajados a ler todos os lados da controvérsia e
não apenas o lado ortodoxo. Se algum de entre eles tiver sentimentos fortes em
relação a um ou a outro dos lados, ser-lhe-á dito para encontrar factos que
suportem a sua visão, e para entrar em debate com os outros que sustentem
ideias diferentes.
[Nos debates] o professor
deverá aprender a não tomar partido por nenhuma das partes, ainda que ele [ou
ela] tenha grandes convicções.
Se a maioria dos alunos
tomar o partido de um dos lados, o professor deverá tomar o do lado oposto,
dizendo que o faz em nome da argumentação.”
Bertrand
Russell, On Education
Retirado
de Bertrand Russell - Sobre A Educação,
por Maria Teresa Ximenez, Ensinar
Filosofia? O que dizem os filósofos?, coordenação de Maria José Vaz Pinto e
Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.
Poderá
o ato de chicotear alguém ser moralmente certo?
por
João
Viana
Para realizar este artigo, baseei-me no
filme 12 Anos Escravo, que vi
recentemente. Este filme relata a história de Solomon Northup, um homem negro livre
que é enganado, sequestrado e vendido como escravo no estado de Louisiana, onde
a escravatura existe com uma força tal que é vista como algo bastante natural. É,
portanto, uma biografia “de um dos tempos mais negros da História do Homem”.
Este filme chamou-me à atenção,
principalmente por causa de uma parte que se destaca. Numa das cenas, o “Mestre”
(proprietário dos escravos) ordena a Platt – Solomon recebera este nome de
forma a esconder a sua verdadeira identidade – que chicoteie Patsey (uma
escrava) com toda a força, até se verem os ossos, ou, se não o fizesse, mataria
todos os “pretos” que visse à sua frente. Platt, então, pega no chicote e
dá-lhe as chicotadas. Aqui, o problema filosófico é evidente: será que Platt
fez bem em chicotear Patsey? Ou deveria ter-se negado a chicoteá-la, condenando
assim à morte muitos dos que com ele serviam aquele “Mestre”?
É comum, e racionalmente compreensível,
pensar-se que o ato de chicotear alguém é moralmente errado. No entanto, também
é normal pensar-se que provocar a morte a alguém é igualmente um ato moralmente
incorreto.
Platt teve de escolher entre chicotear
uma pessoa com toda a força e negar-se a chicoteá-la e, assim, provocar a morte
a várias pessoas. Encontra-se aqui, portanto, um dilema, em que parece que
nenhuma das opções é acertada. Contudo, é importante analisarmos este dilema
filosoficamente, de modo a tirarmos conclusões acerca da escolha que se
aproxima mais de uma ação moralmente correta.
Podemos analisar esta situação sob um
ponto de vista deontológico e sob um ponto de vista utilitarista.
John Stuart Mill, defensor de uma ética
utilitarista, afirma que devemos agir de forma a promover a felicidade geral,
ou seja, de forma a maximizar o bem – e, neste caso, arrisco-me a dizer que se
adequa mais o termo “minimizar o mal”, por razões que me parecem óbvias. A
ideia principal de Stuart Mill é que a ação moralmente certa é a que tem
consequências mais valiosas, pelo que é importante ponderar os prejuízos e os
benefícios que a sua realização traz a todos os indivíduos. No caso do dilema
de Platt, segundo a perspetiva utilitarista de Stuart Mill, a escolha
moralmente certa seria chicotear Patsey, pois a morte de várias pessoas seria
uma consequência pior que o sofrimento de uma pessoa, ou mesmo que a morte
desta, e, portanto, Platt agiu bem.
Já Immanuel Kant, defensor da ética
deontológica, afirma que devemos agir por dever, existindo leis morais universais
que devem ser cumpridas independentemente das consequências. Este filósofo
confere uma grande importância às intenções por detrás das ações. Segundo Kant,
“uma vontade é boa não por causa dos seus efeitos ou do que consegue alcançar,
nem por ser apropriada para alcançar um dado fim; é boa unicamente através da
sua vontade, isto é, é boa em si”. Assim, segundo a perspetiva deontológica de
Kant, as ações moralmente certas são aquelas em que há uma intenção ou vontade
boa – em relação à ação em si e nunca em relação aos efeitos da mesma ação,
isto é, ao fim pretendido com a realização de tal ação – e que são motivadas
pelo sentido do dever. Qualquer forma de tortura, pelo sofrimento que provoca,
é encarada por Kant como uma ação contrária ao dever, na qual a intenção não
pode ser boa, sendo, portanto, uma ação moralmente errada (independentemente
das circunstâncias em que é realizada). Assim, podemos concluir que, segundo
esta perspetiva, Platt agiu mal ao chicotear Patsey, pois agiu contrariamente
ao dever.
Depois de analisado o problema
filosófico em questão sob dois pontos de vista tão distintos, resta-nos tirar
as nossas conclusões acerca da escolha que Platt deveria ter tomado. Mas estas conclusões
são obviamente subjetivas, pelo que cada um terá a sua própria opinião sobre
este assunto.
Pessoalmente, sou da opinião de que
Platt agiu corretamente, apesar de considerar o ato de chicotear alguém em si
mesmo desprezível e de uma grande falta de senso moral. No entanto, analisando
bem o problema em questão, parece-me que o facto de se salvarem várias vidas
justifica essa tortura aplicada somente a uma pessoa. É, de facto, de admitir
seriamente que nenhuma das duas opções consideradas aparenta ser moralmente
correta, mas, tentando hierarquizar essas duas opções, olhando às consequências
das ações, parece-me óbvio que a tortura aplicada somente a uma pessoa, mesmo
que resulte em morte, se sobrepõe, por não apresentar consequências tão más
como a morte de múltiplas pessoas. Por este motivo, considero que a escolha que
Platt fez corresponde à ação que se aproxima mais de uma ação moralmente certa.
Depois de algumas hesitações, regressei a este texto para me despedir de vocês e, deste modo, agradecer-vos o prazer e o privilégio que foi para mim ter sido vosso professor. Fecha-se um ciclo, precisamente com um dos textos de boas vindas à Filosofia que vos ofereci no início do 10º ano. Ilustrado com duas fotografias de Henri Cartier-Bresson, um fotógrafo genial que muito aprecio.
Porque, tal como vos disse hoje na última aula, acredito que o conhecimento, a arte e a cultura fazem de nós melhores pessoas e tornam mais ricas as nossas vidas.
E tinha que haver uma música, claro. Jack Johnson, uma mensagem de esperança para que realizem os vossos sonhos.
Divirtam-se :)
«Do que você precisa, acima de tudo,
é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por
você; fique certo de que valem mais todos os erros se forem cometidos segundo o
que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles forem meus, não seus. Os
meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois
da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe
pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque
esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que
mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem. Feche, pois, os
ouvidos ao que lhe ensino, se alguma coisa lhe ensino; faça a viagem por sua
conta e risco, você mesmo ao leme.»
Agostinho
da Silva, in Sete Cartas a Um Jovem Filósofo
Ontem fui assistir a um
concerto especial: Steve Hackett Genesis
Extended 2014. Uma revisitação da banda mítica inglesa pela mão do seu
virtuoso guitarrista e compositor. O concerto foi magnífico. Não era fácil
recriar em palco a atmosfera musical dos Genesis,
principalmente no que diz respeito à “substituição” de Peter Gabriel. Muito
menos agradar a uma plateia conhecedora ao pormenor dos discos em vinil. Mas
tudo isso foi conseguido – e muito mais. Dancing with the Moonlit Knight e Supper's Ready foram perfeitos, The Musical Box perfeitamente sublime.
Tal como há uns anos realizei o sonho de ver ao vivo Paco de Lucía junto do meu
filho João Pedro, desta vez acompanhou-me a minha filha Maria Miguel. (Falta-me,
talvez, Van Morrison, mas sei que nessa noite teremos de estar lá todos...)
Depois do concerto fomos beber um copo, conversar e, desse modo,
libertar as palavras que precisavam de ser ditas depois de uma noite assim. Uma
coisa puxa a outra, e acabámos a comparar o modo como os adolescentes de então
e os de hoje vivem a música. E eu, que antevira já neste concerto um pretexto
que me levaria inevitavelmente a regressar às minha próprias memórias, achei
por bem partilhar convosco este texto.
Mais do que um elogio de uma banda histórica, é um regresso a mim, à minha
história como pessoa.
Falo de memórias da
adolescência. Ávido, inquieto, muitas vezes perdido. Quando a música que ouvia
dizia mais sobre mim que tudo o mais. Quando ouvir música era, para um rebelde
adolescente orgulhosamente ateu, um ritual espiritual por excelência, uma
vivência mística, uma experiência iniciática. Quando caminhar na rua (e não
havia phones...) correspondia a uma marcha triunfal ao som da música que ecoava
delirantemente dentro de mim, como se um mar de indiferentes se abrisse à minha
passagem, celebrando sem o saberem a minha secreta superioridade musical.
Sim, tudo isto fazia todo o
sentido. Um sentido original e talvez único, raramente partilhado (tipo um
tesouro, dir-se-ia hoje), que funcionava como um escudo invisível que me
protegia generosamente da esmagadora maioria da “gente” que à minha volta se
arrastava. Principalmente na escola, esse lugar insuportavelmente formatado,
onde exigia que me deixassem ser eu próprio sem que, no entanto, soubesse ainda
muito bem o que era ou o que queria ser.
Mas que interessava isso,
se o que mais importava era saber que tinha deixado já a inércia da mediania e
me aventurava numa descoberta sem fim à vista, como se uma força interior que
desconhecia (mas reconhecia como minha) me impelisse a mergulhar no
desconhecido simultaneamente belo e assustador?
Como muitas vezes acontece,
apenas mais tarde descobri as palavras certas para o que me esmagava na altura.
Com Cioran, percebi que o que nascia então em mim era a “tentação de existir”
e, portanto, a recusa visceral de estar condenado a ser apenas mais uma coisa
que existe.
Vendo bem, tudo contribuía
para isso. Os discos em vinil (que, religiosamente, se levavam para a escola),
a dificuldade em os encomendar (muitas vezes só em Viseu ou Coimbra), o preço e
as negociações incontornáveis a fazer com os pais, o pavor de que os discos se
riscassem. Havia em tudo isto algo que nos distinguia e que, por estranho que
possa parecer, parecia autorizar que nos víssemos como especiais.
Falo agora de mim. Não eram
as notas ou os elogios dos professores que me animavam. Gostava disso, claro,
principalmente da ideia entretanto difundida de que viria a ser “um escritor”.
Mas ali, naquela altura, eu, puto adolescente, não queria saber disso. Sentia-me
membro de um reservadíssimo clube de adolescentes especiais, tragicamente
incompreendidos pela multidão que, alegre e ruidosamente à nossa volta, exibia
sem sequer o saber uma leveza assustadoramente feliz, incompreensível e quase obscena.
Distinguíamo-nos por diversas
coisas, mas principalmente pela disponibilidade para ouvir música. Ouvir, sem nada
mais. Suspender por horas o mundo e os outros e o que quer que fosse
(colocando-nos a nós próprios entre parêntesis). Momentos únicos: sentir que
tudo estava finalmente perfeito, pegar no braço do gira-discos e, com o rigor
meticuloso de um ato cirúrgico, colocar a agulha no início do disco e voltar
rapidamente ao local prévia e cuidadosamente selecionado para uma audição que
era uma deliciosa entrega. Total, brutal, quase escandalosamente amorosa.
Não sei bem como explicar,
por isso vai mesmo assim: naquela altura ouvíamos álbuns, não curtíamos músicas
avulsas. Como qualquer ritual respeitável, um álbum tinha uma sequência
concebida pelos seus criadores e assim deveria ser. E se, por hipótese, um tema
do álbum nos parecia menos bem conseguido, partíamos do princípio de que a
falha era nossa, não dele. Este exercício de paciência e humildade era
indispensável para que evoluíssemos musicalmente. A maioria não superava esta
prova de fogo e, fosse pelo que fosse, ficava por um patamar mais elementar.
Sabíamos intuitivamente quais as músicas ou os álbuns que funcionavam como
indicadores de nível de apreciação musical. Era fácil gostar de I Know What I Like, por exemplo, mas
quantos reconheceriam a complexidade sublime de Supper's Ready? É
também por isso que, para um apaixonado pelos Genesis, a banda acabou realmente com a saída de Peter Gabriel. É
absolutamente irrelevante que Trick Of
The Tail até não seja um mau álbum. A verdade é que, apesar de Peter
Gabriel não ser o Messias, Phil Collins será sempre visto como o
Usurpador.Tratou-se de um caso evidente
de ruptura afectiva, que só pode ser
escrita assim mesmo, em total desrespeito por esta modernidade insuportável
(inevitável?) do acordo ortográfico. Como não preferir a autenticidade original
que criou novos mundos em nós, contra os mapas previsivelmente repetidos sobre
papel vegetal? Como não perpetuar o movimento inicial, o trilho sublimemente
apenas esboçado, o gesto inaugural?
Acredito que as nossa vidas
têm uma banda sonora. A da minha adolescência está repleta de músicas dos Genesis, como estaria provavelmente de
temas dos Joy Division ou Echo & The Bunnymen se tivesse
nascido uns anos mais tarde. Mas isto das bandas sonoras das nossa vidas é um
pouco como os paradigmas de Thomas Kuhn: de tão intrinsecamente diferentes, são
incontornavelmente incomensuráveis. Como decidir entre os Doors, Beatles ou Joy Division, por exemplo? Razão tinha
Vergílio Ferreira quando escreveu que, afinal, não envelhecemos, limitamo-nos a
mudar de constelação...
Era mais ou menos isto que
queria dizer. E não, não é um ajuste de contas. É apenas uma história que um
dia teria de contar. Justamente por uma questão de justiça...